Mexeu com uma, mexeu com todas

Porque cresce a violência machista?

12 de Maio, 2025
7 mins leitura

Por Renata Cambra, porta-voz do Trabalhadores Unidos

A pergunta é urgente. E atravessa cada uma de nós que já sentiu medo ao voltar para casa, que já teve de medir palavras para não provocar, que já ouviu “é melhor não denunciar” ou “ninguém vai acreditar em ti”. A pergunta repete-se nas notícias, nas conversas, nas redes sociais, entre amigas e mães e colegas e irmãs. Porque cresce a violência machista? Repete-se sempre que se conhece mais um caso, mais um corpo, mais uma rapariga violada, mais uma mulher morta. E os últimos meses têm sido dolorosamente férteis em exemplos. 

Em Loures, uma jovem foi violada por um grupo de jovens influenciadores. O caso está em investigação, mas as dinâmicas que o rodeiam são conhecidas: poder, grupo, impunidade, uma vítima descredibilizada e um silêncio cúmplice — tanto no espaço público como nas redes sociais. Em Braga, um rapaz de 19 anos, Luís Carlos Rodrigues, foi assassinado ao tentar proteger duas amigas de assédio e possível agressão sexual. O seu “erro”? Intervir. Não se calar. Ser aliado. 

São dois exemplos de violência machista que chocam não só pela sua violência, mas também porque envolvem jovens. Porque desmontam a ilusão de que a violência de género pertence a “outras gerações”. São reflexo de um sistema que continua a reproduzir modelos de masculinidade centrados no controlo, na virilidade, na negação da vulnerabilidade e na objetificação das mulheres, um sistema que protege o agressor e desconfia da vítima.

A violência contra as mulheres nunca desapareceu

Estes casos expõem de forma brutal aquilo que muitas pessoas ainda teimam em negar: a violência de género não é um conjunto de incidentes isolados. É um padrão, é estrutural,  é a consequência direta de uma cultura antiga que ainda hoje, mesmo em 2025, inferioriza as mulheres, desculpa o abuso e banaliza o medo. 

Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2024, as participações de violações aumentaram 9,9% face ao ano anterior. Já em 2023, o RASI tinha registado um aumento de 16,9% nos crimes de natureza sexual, com mais de 2.300 denúncias de abuso sexual, 980 de violação e 620 de assédio sexual. A maioria das vítimas? Mulheres. A maioria dos agressores? Homens, muitos deles jovens. E não é apenas a violência sexual que aumenta.

A violência doméstica continua a ser o crime mais denunciado em Portugal, com 30.221 ocorrências registadas só em 2024, segundo o mesmo relatório. O Observatório de Mulheres Assassinadas, da UMAR, contabilizou 20 feminicídios de 1 de janeiro a 15 de novembro de 2024 — 16 em contexto de relações de intimidade. Mas estes são só os casos fatais. A cada semana, dezenas de mulheres são espancadas, ameaçadas, perseguidas — muitas vezes sem apoio, sem respostas eficazes, sem garantias de proteção.

A violência machista não é um fenómeno novo. O que mudou foi a disposição de muitas mulheres — e cada vez mais pessoas — para dizerem que basta de violência de género. Depois de o movimento feminista ter, entre as décadas de 1960 e 1980, iniciado um combate mais direto pela emancipação da mulher, com a chamada revolução sexual, a quarta onda do feminismo, começada em meados de 2010, que conjuga o ativismo de rua com a mobilização digital, tem fortalecido a denúncia, a solidariedade e a consciência coletiva. Hoje há mais vozes, mais denúncias, mais consciência. Mas isso tem provocado uma reação feroz.

A normalização da violência e da misoginia nos jovens

Nas redes sociais, multiplicam-se os discursos misóginos e os influenciadores que promovem ideias retrógradas e violentas sob o disfarce de “liberdade de expressão” ou “direitos dos homens”. Muitos adolescentes encontram nestes discursos um escape para o isolamento e para a falta de perspetivas — e acabam radicalizados, com as suas frustrações transformadas em raiva contra as mulheres. Plataformas como o TikTok e o Discord estão repletas de conteúdos que reforçam estereótipos misóginos e incitam à violência simbólica ou real. 

A série Adolescência retrata isto com crueza: como o discurso incel e a violência de género se instalam de forma quase invisível nas vidas dos mais novos, através de jogos, fóruns e vídeos virais. Também recentemente, foi lançado o jogo No Mercy, que incitava os jogadores a tornarem-se no “pior pesadelo das mulheres” e a “não aceitar um não como resposta”, promovendo a violação e o incesto “sem piedade”. Foi denunciado e retirado, mas só depois de milhares de downloads.

A violência está a tornar-se mais jovem — e mais crua. Estudos da APAV revelam que quase um quarto dos jovens entre os 15 e os 19 anos já viveu situações de violência psicológica, física ou sexual em relações de namoro. Há cada vez mais denúncias de assédio, violação e controlo digital entre adolescentes. E o mais alarmante é que muitos destes comportamentos são vistos como “normais”, “coisas da idade”, ou pior: “provas de amor”. 

Não por acaso, o RASI 2024 reporta o aumento da criminalidade juvenil, com predomínio dos crimes de natureza sexual. Rapazes crescem a ouvir que ser homem é ser dominante e viril, que o “feminismo é exagero”, que “as mulheres provocam” e que “já não se pode dizer nada”. Crescem a confundir limites e respeito pela integridade das mulheres com ameaças à sua liberdade. E no vazio da educação com modelos afetivos, sociais e políticos positivos, aparecem os vendilhões da masculinidade tóxica, com discursos fáceis e perigosos.

A hipocrisia da extrema-direita

E enquanto a cultura digital normaliza esta raiva, há forças políticas a transformá-la em arma. A extrema-direita encontrou aqui um terreno fértil. Tem sido incansável na tentativa de desmontar os avanços conquistados pelas mulheres — desvalorizando a violência de género, atacando o conceito de “feminicídio”, defendendo abertamente ideias regressivas sobre o papel da mulher na sociedade. O discurso é sempre o mesmo: a culpa é das feministas “radicais”, da “ideologia de género”, dos direitos a mais.

A extrema-direita não é resposta, mas catalisadora do problema e por isso fez da misoginia bandeira — aqui e em todo o mundo. Basta olhar para Espanha, onde o partido VOX tenta apagar a expressão “violência de género” da legislação. Ou para os Estados Unidos, onde se criminaliza o aborto e se tenta reverter décadas de avanços. O padrão repete-se: atacar os direitos das mulheres é sempre o primeiro passo do autoritarismo. Querem que tenhamos medo. Querem que voltemos ao silêncio. Querem que aceitemos a violência como inevitável — ou como culpa nossa.

Ao mesmo tempo, promove o discurso de que a violência contra as mulheres é culpa da imigração. Sempre que o agressor não é português, há uma avalanche de indignação seletiva — não para proteger as vítimas, mas para criminalizar comunidades inteiras. Como se o machismo fosse um vírus importado. Como se a violência contra as mulheres fosse um problema “dos outros”. A realidade, porém, é clara: a vasta maioria dos crimes de violência doméstica, violação e assédio em Portugal é cometida por homens portugueses, contra mulheres portuguesas — dentro de casa, no emprego, nas escolas, nos hospitais.

Esta narrativa não é só racista — é perigosa. Porque desvia o olhar do verdadeiro problema: um sistema estrutural de desigualdade e dominação, enraizado em todas as camadas da sociedade. E assim oferece uma solução falsa para um problema real, apontando para fora para não ter de olhar para dentro. A violência machista não tem nacionalidade. Mas tem género. E tem um contexto: um sistema patriarcal, onde o poder é lido como masculino e a submissão como feminina; um sistema que a extrema-direita reivindica e procura ativamente manter.

O combate à violência machista deve ser de todos — com as mulheres na dianteira

Então, porque cresce a violência machista? A resposta é tão simples quanto incómoda: a violência machista cresce porque está a ser alimentada: pelo discurso, pela cultura, pela política. Está a ser normalizada, justificada, até incentivada — especialmente entre os jovens. E cresce também porque estamos a lutar mais, a denunciar mais, a quebrar o silêncio. 

Há quem diga que este é um combate “de mulheres contra homens”. Não é. É uma luta contra uma estrutura de exploração e opressão que nos fere a todos. As mulheres estão na linha da frente porque são as primeiras atingidas e as principais vítimas desta violência opressora— mas não estão sozinhas. Muitos homens já perceberam que o machismo não os protege: isola-os, oprime-os, transforma vulnerabilidade em vergonha. Mas reconhecer isto não é relativizar o problema: é reforçar que esta luta é contra uma estrutura económica, política e social, e não contra um género. O combate à violência machista tem de ser uma luta de todos contra a desigualdade, o medo e o silêncio, com as mulheres na dianteira.

A boa notícia é que não somos poucas e há algo mais forte do que o medo: a coragem de quem já não aceita voltar atrás. Cada vez menos aceitamos a normalização da violência, a banalização da misoginia, ou o recuo de direitos conquistados com séculos de luta. Essa é a nossa resposta. Não vamos parar, não seremos silenciadas. Exigimos zero tolerância para a violência machista e investimento na educação como forma de prevenção e coibição da violência doméstica, sexual e moral contra mulher, em particular nas escolas, mas também nos locais de trabalho. Não aceitamos dar nem um passo atrás e continuaremos a nossa luta “por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.

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