O legado de Stonewal

27 de Junho, 2024
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A Revolta de Stonewall, ao rebentar num dos períodos mais radicalizados dos Estados Unidos, iniciou um processo de organização e de luta, com a criação do Gay Liberation Front (GLF).

Era uma sexta-feira à noite normal de verão, num pequeno bar em Nova Iorque chamado Stonewall Inn, no dia 28 de Junho de 1969. O Stonewall Inn era um bar com ligações à máfia, que agregava muitas das pessoas mais marginalizadas e desprezadas pela sociedade homofóbica e transfóbica americana. À 1:20 da manhã, entre a música e o barulho dos copos, ouve-se um berro: “Polícia!”. A confusão instalou-se. Algumas pessoas tentaram escapar pela casa de banho, outras diretamente pela porta, que se encontrava barrada pela polícia. Tratava-se de uma operação policial que, sob o pretexto de inspecionar a gestão mafiosa do bar, assediava principalmente as pessoas queer que lá socializavam.

As pessoas vestidas com “roupas de mulher” eram levadas para a casa de banho para a polícia confirmar o seu sexo. Quem tentava resistir à ofensiva policial era imediatamente algemado. A polícia começou a ser particularmente violenta com uma mulher trans, à porta do bar, onde foi crescendo um grupo de pessoas, a maioria delas LGBT. Segundo conta a história, a mulher virou-se para a multidão e disse: “porque é que vocês não fazem nada?!”. Esse e outros casos de resistência transformaram a operação policial num motim, uma revolta no bar de Stonewall Inn.

A Revolta de Stonewall, que se tornou a faísca que acendeu a moderna luta LGBTQIA+, não aconteceu de forma isolada, como um oásis de luta num deserto de agitação popular, bem pelo contrário. Nos anos 60 e 70, o mundo vivia uma onda de fortes mobilizações em todos os continentes. Haviam as lutas anti-imperialistas dos países da Ásia, África e América Latina pela libertação nacional. A vitória da revolução cubana em ‘59; o maio de ‘68 na França; e até mesmo a revolução portuguesa em ‘74.

A nível nacional, os Estados Unidos estavam a viver um período de fortes mobilizações e de radicalização. Várias eram as causas que levavam a juventude, as pessoas racializadas e os trabalhadores a saírem à rua. Eram os anos da ascensão da segunda onda feminista; do movimento Black Power; da luta – essencialmente estudantil – contra a guerra no Vietname. A ascensão era tanta que o FBI chegou a ter (entre ‘56 e ‘71) um programa de contrainteligência – COINTELPRO – que visava, em especial, estes movimentos progressivos. Algumas pessoas acabaram presas, outras assassinadas.

A repressão nos Estados Unidos era atroz e generalizada, em especial, a todos aqueles que fugiam da norma branca, cisgénero e heterossexual. Era ilegal, para qualquer pessoa, vestir-se contrariamente ao género que lhe era imposto e a brutalidade policial era constante. Em 1969, a sodomia (leia-se sexo entre pessoas do mesmo género) era legal num só estado: Illinois. E não viria a ser legalizado a nível federal até 2003, pela decisão do Supremo Tribunal no caso Lawrence v. Texas.

A Revolta de Stonewall, ao rebentar num dos períodos mais radicalizados dos Estados Unidos, iniciou um processo de organização e de luta, com a criação do Gay Liberation Front (GLF) – cujo nome veio influenciado pelos movimentos de libertação nacional como os da Argélia e do Vietname1. “Gay”, naquela altura, era um termo usado para descrever todas as pessoas LGBTQIA+, e o movimento representava essa diversidade. A GLF tinha um foco especial na unificação de “todos os oprimidos” – o que hoje chamamos interseccionalidade –, formando fortes laços com o ascendente movimento feminista. As suas reivindicações variavam desde uma educação sexual inclusiva até à abolição da família2. Mas, crucialmente, este novo movimento deu também origem às primeiras marchas de orgulho pela “libertação gay”, com um slogan que se foi espalhando pelo mundo: “out of the closets and into the streets”3.

No caldo radicalizado que se vivia nos Estados Unidos, mesmo os dirigentes dos partidos de esquerda que se formavam na altura apoiavam o movimento de libertação gay. É o caso de Huey Newton – um dos fundadores dos Black Panther Party – que, numa carta para “os irmãos e irmãs revolucionários do Gay Liberation Front”, dizia que as pessoas queer, por serem das mais oprimidas na sociedade, seriam também das mais revolucionárias.

Dentro da GLF havia comissões para diversas causas. De uma dessas comissões surgiu o STAR, Street Transvestite Action Revolutionaries, fundada por duas drag queens: Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera; que oferecia apoio às pessoas queer maioritariamente em situação de sem abrigo. A STAR chegou a participar em ações unitárias com o partido independentista porto-riquenho Young Lords e Sylvia Rivera dizia-se parte deles.

Muito aconteceu ao movimento LGBTQIA+ depois destes tempos; o recuo da luta nos anos 80 – com o impacto da epidemia da SIDA –, a ligação que se conseguiu com os mineiros em Inglaterra, até à conquista de alguns direitos legislativos que temos hoje. Depois de tudo isso, o movimento é hoje bastante diferente daquele iniciado nos anos 70, enraizado nos setores mais explorados, marginalizados e oprimidos da classe trabalhadora; ligado às outras lutas – como a luta anti-racista e pela libertação nacional.

Atualmente, uma parte do movimento chega mesmo a reivindicar-se “apolítico” – não compreendendo que a luta pela emancipação é, por necessidade, uma luta política – e, na sua confusão, leva uma política de convidar empresas, apoiando-as no seu branqueamento. Por isso, torna-se hoje urgente recuperar esse legado deixado por Stonewall; recuperar essa luta contra a violência policial, anti-racista e anti-capitalista, na busca incessante pela emancipação queer.

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