Celebramos os 50 anos do 25 de Abril não como forma de celebração do atual regime mas como inspiração das milhares de pessoas que, há 50 anos, doavam toda a sua energia para erguer uma verdadeira democracia
No seu livro “Abril Traído”, publicado em 1999, Francisco Martins Rodrigues começa por dizer: “Fala-se cada vez menos do 25 de Novembro e no entanto é essa a única e verdadeira data de fundação do regime actual”. Para o bem e para o mal, hoje a direita já não esconde a data do 25 de Novembro de 1975 e celebra-a com entusiasmo; como foi o caso da Câmara de Lisboa que recentemente, pela primeira vez, marcou a data com uma cerimónia e exposições. Se, por um lado, a direita é hoje mais honesta na sua celebração do 25 de Novembro, por outro mente sobre o que este realmente significou.
O que foi a revolução portuguesa?
Na manhã do dia 25 de Abril de 1974, começa o golpe militar protagonizado por um setor das forças armadas que se opunha à guerra colonial. A ideia das altas figuras revoltosas era de alterar o regime e abrir um processo de neo-colonização dos “territórios ultramarinos”. Assim que tomaram controlo das televisões e rádio, a sua mensagem para o povo português era clara: “[apelamos] a todos os habitantes da cidade de Lisboa a recolherem-se em suas casas”. A ideia nunca foi a de uma revolução popular.
No entanto, o povo, que durante os quase 50 anos da ditadura fascista passava o tempo a olhar para o chão e a morder a língua, não perdeu esta oportunidade e foi para a rua neste dia e nos seguintes, começando um processo que parecia imparável. A mobilização da classe trabalhadora tornou-se realmente qualitativa quando, no 1º de maio de 1974, 1 milhão de pessoas se juntaram em Lisboa na celebração do primeiro Dia do Trabalhador em liberdade.
Durante os meses seguintes, no meio de tantas necessidades por cumprir, os trabalhadores começaram a resolver os seus problemas pelas suas próprias mãos. Por todo o lado multiplicavam-se as comissões de trabalhadores, moradores e soldados. As comissões de moradores aprovavam ocupações das casas vazias; as comissões de trabalhadores geriam fábricas em que o patrão ou tinha fugido, ou fora expulso pelos trabalhadores; as comissões de soldados saneavam os fascistas das hierarquias mais altas. A banca e vários setores chave da economia foram nacionalizados e os proprietários dos grandes monopólios que dominavam a economia portuguesa abandonaram o país.
Desta forma, as novas comissões, ainda que num estado muito embrionário, expressavam já uma nova ideia de democracia, uma em que o povo organizado tomava realmente as rédeas da sua própria história. Esse projeto de construção de uma verdadeira democracia foi o que o processo da revolução portuguesa colocou na ordem do dia.
O que foi o 25 de Novembro
Hoje a ideia que prevalece do 25 de Novembro de 1975 é de que se tratou de um contra-golpe a um hipotético golpe que estaria a ser preparado pelo PCP. Esta visão foi defendida por Mário Soares, nos anos 90, em entrevista a Maria João Avilez: “Houve uma tentativa de golpe, animado pela esquerda militar e pelo PCP, e uma resposta, se quiser, contragolpe da parte do sector democrático”.
Mas a verdade é que o PCP não planeava nenhuma resposta militar. Dias antes, em comunicado de imprensa, o secretário-geral Álvaro Cunhal anunciava que as prioridades do partido eram “evitar uma nova ditadura, defender as liberdades e a jovem democracia portuguesa”. Aliás, segundo a historiadora Raquel Varela, no próprio dia 25 de Novembro milhares de militantes e simpatizantes comunistas juntaram-se nas sedes do PCP e unidades militares pedindo armas para combater o golpe da reação; no entanto, a direção do PCP recusou-se a entregá-las.
A falsa narrativa da história apresentada pela direita e PS serve para esconder o que realmente foi o 25 de novembro: um golpe da burguesia portuguesa, levado a cabo pelo grupo dos 9, um grupo de oficiais das Forças Armadas ligado ao PS, para estagnar a revolução operária e restabelecer a cadeia de comando dentro do exército, a que ajudou a ausência de resposta dos setores de esquerda do MFA, sob influência do PCP.
O regresso à “normalidade”
Ramalho Eanes, um dos principais arquitetos do golpe contra-revolucionário, veio mais tarde recordar a data como o dia em que “a vida política entrou na normalidade”, acrescentando que “em pouco mais de um ano se deram passos decisivos na consolidação das instituições”.
Sem o estorvo de setores organizados da classe trabalhadora e do exército, estava agora facilitado o caminho para a construção das novas instituições. As comissões de soldados foram extintas, a banca foi novamente privatizada e as comissões de trabalhadores e moradores foram perdendo força. Foram voltando as famílias monopolistas – como a Família Champalimaud, a Família Mello e a Família Espírito Santo – e rapidamente recuperaram o seu império.
A constituição, aprovada em 1976, instaurava, de uma vez por todas, uma democracia representativa ao estilo da democracia burguesa europeia, ou seja, o atual regime enterrando de vez a ideia, que foi crescendo em largos setores do povo, de uma verdadeira democracia. Por isso dizemos que o regime atual é o resultado do 25 de Novembro de 1975 e não do 25 de Abril de 1974.
Aos netos de Abril
A direita avança na sua ofensiva ideológica. Diz que vivemos em socialismo, mas este regime, em que milionários controlam a economia e a política, e em que os trabalhadores têm cada vez menos direitos, não é socialismo, é mesmo o capitalismo a funcionar normalmente. Este regime é produto da derrota da revolução popular que nasceu a partir do 25 de Abril e que acabou traída pelo MFA, PS e pelo próprio PCP.
Por isso celebramos os 50 anos do 25 de Abril não como forma de celebração do atual regime mas como inspiração das milhares de pessoas que, há 50 anos, doavam toda a sua energia para erguer uma verdadeira democracia.