5 notas sobre as Legislativas de 2024

15 de Março, 2024
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1. Os de cima não conseguem governar como antes

As eleições legislativas de 10 de março já foram, mas a instabilidade política fica, com os dois grandes pilares do regime, PS e PSD, próximos de um empate. Há quase 40 anos que o bloco central não alcançava uma percentagem tão baixa de votos em conjunto (cerca de 60%), resultado que expressa o desgaste dos partidos tradicionais do centro, tal como temos visto por todo o mundo, como sintoma da crise de regime que vem afetando vários países, como Espanha, França e a Itália. Portugal foi uma exceção a essa regra quando o PS conseguiu uma maioria absoluta em 2022 e, mesmo assim, não foi capaz de levar o governo a cumprir os 4 anos de legislatura.

Desta vez, a descrença nos dois partidos que se têm alternado no poder resultou numa maior dispersão dos votos e, como consequência, numa Assembleia da República fragmentada, que seguirá a batuta de um governo frágil, quer pela instabilidade causada pelas alianças que terá de pactar, quer pelo continuar da perda de prestígio das instituições do regime. O PS, com menos meio milhão de votos e menos 40 deputados do que em 2022, teve um resultado semelhante ao das eleições de 2011, que retiraram José Socrates do poder, pagando assim a fatura dos últimos 8 anos de governação e dos vários casos em que se viu envolvido. Já o PSD, coligado com o CDS e PPM, conseguiu basicamente os mesmos votos que PSD e CDS tinham conquistado por separado nas últimas eleições, o que, com o aumento da participação deste ano, significou na verdade uma descida de 1,4% nos votos, mas ainda assim o suficiente para garantir a sua vitória mais curta de sempre sobre o PS.

Esta vitória marginal de PSD/CDS com 29,49% dos votos não apaga, no entanto, a viragem do parlamento à direita, com Chega a disparar os seus resultados para os 18,06% e a Iniciativa Liberal a manter uma votação próxima à de 2022, com 5,08%, consolidando-se os dois como os maiores partidos fora do centrão. Ainda assim, Montenegro terá dificuldades em conseguir um governo estável baseado nesta aritmética parlamentar, já que, durante a campanha, afastou sempre a possibilidade de formar governo com o Chega, não só para tentar captar alguns dos votos que iriam para o PS, mas também porque previa que o Chega no governo acabaria por ser um fator de instabilidade, como a experiência no governo regional dos Açores demonstrou. Tudo isto significa que, para conseguir governar, o PSD terá de fazer acordos quer com o PS, quer com o Chega, arriscando-se a não durar além da aprovação do Orçamento do Estado para 2025.

Além disso, a Iniciativa Liberal, pressionada entre o voto útil na direita tradicional e o voto de descontentamento na extrema-direita trauliteira, recuou na disponibilidade para integrar o governo de Montenegro, preferindo manter-se no campo da oposição. Perante a perspectiva de um governo frágil e a prazo, a oposição parece ser, de facto, a melhor aposta para quem aspira a resultados melhores, como o próprio PS, que acaba de se despedir de quase uma década de governo de António Costa. Pedro Nuno Santos, aliás, deixou o mote ainda durante a noite eleitoral, dizendo prontamente que “o PS será oposição”. A aposta de Pedro Nuno Santos é de assim conseguir descolar-se da imagem de continuidade dos anteriores governos e ganhar balanço como líder da oposição, enquanto o PSD vai fervendo num governo minoritário e instável, para eventualmente disputar uma nova eleição com melhor relação de forças.

Com tanta fragmentação e incerteza no parlamento e no governo, duas instituições centrais para o regime, a classe dominante terá de procurar novas formas de criar um ambiente estável para os seus negócios. No entanto, perante uma economia europeia em arrefecimento e uma crise económica sem fim à vista, o governo das elites que assumir funções não será capaz de colocar um travão ao descontentamento crescente, que leva o regime e as instituições à sua própria crise de legitimação e representatividade. Mesmo o excedente orçamental previsto, conseguido à custa do desinvestimento nos serviços públicos a que o PS gosta de chamar “contas certas”, dificilmente permitirá uma resposta que seja suficiente para disfarçar as áreas que já estão em crise há anos.

Face à desigualdade económica crescente entre ricos e pobres e as negociatas ruinosas que envolvem governantes e grandes grupos económicos, a desconfiança e o ressentimento com as instituições, que geram a radicalização e a instabilidade política para que Marcelo Rebelo de Sousa tanto vem alertando, não vão desaparecer e serão uma ameaça constante para o novo governo que assumir funções.

2. Chega canaliza o descontentamento popular

Apesar de ter ficado em terceiro lugar, o Chega apareceu como o grande vencedor da noite eleitoral, ao alcançar pela primeira vez 1 milhão de votos, que permitiram a subida de 12 para 48 deputados. Este crescimento vertiginoso da extrema-direita reacionária e chauvinista é preocupante, mas não totalmente inesperado, e é importante que a esquerda seja capaz de tirar dele as devidas lições, já que foi por a esquerda parlamentar abandonar o seu papel de oposição ao governo que, para muitos, a única oposição visível passou a ser o Chega, tal como foi por a esquerda parlamentar se dedicar a salvar a “credibilidade” e a “estabilidade” das instituições do regime em crise que o Chega passou a ser visto, ainda que erradamente, como o partido “anti-sistema”.

Com razão, o governo, o parlamento e a presidência da república – ou, de forma mais geral, a “classe política” em funções -, tal como a justiça, são vistos por amplos setores populares como antros de carreirismo, corrupção e aparatismo, uma casta privilegiada e desligada da realidade da maioria da população, ao serviço das elites. Desgraçadamente, a esquerda parlamentar, que à custa de sucessivas subvenções parece ter esquecido que este regime não é fruto da revolução iniciada com o 25 de abril de 1974, mas da sua derrota a 25 de novembro de 1975, prefere alimentar a ilusão de que é possível salvar e reformar estas instituições, recusando-se a enfrentá-las frontalmente.

Já o Chega, apesar de ser uma versão reciclada de velhos quadros do PSD e do CDS e de contar não só com vários envolvidos em casos de corrupção e outros crimes nas suas fileiras, mas também com o financiamento de membros de algumas das famílias mais ricas de Portugal, apareceu vezes sem conta em horário nobre a defender, de forma demagógica, uma “limpeza” dos corruptos, atacando o regime, PS, PSD e figuras como Ricardo Salgado, Joe Berardo e José Sócrates por igual, apropriando-se da radicalidade que a esquerda parlamentar abandonou. Esta radicalidade, aliada ao facto de o Chega, por falta de estrutura, ter nas suas listas muitos candidatos com profissões normais, isto é, que não são políticos profissionais ou funcionários do partido – coisa que também já pouco ou nada se vê na esquerda parlamentar – ajuda a criar nos setores descontentes com o governo e com o regime a falsa sensação de que se trata de um partido diferente, de gente normal, fora da “casta”.

Assim, sendo certo que o racismo é um problema estrutural da nossa sociedade, isso não significa que todo o eleitorado do Chega seja racista ou fascista. Se o saudosismo colonialista permitiu ao Chega aparecer e ter um primeiro crescimento à base do nicho do saudosismo colonialista, que efetivamente existe, foi a sua penetração na classe trabalhadora e setores populares intermédios que lhe permitiu dar este salto qualitativo, como indica o relativo paralelismo entre o aumento de votos no partido e a descida da abstenção. O mais provável é que, na ilusão de muitos, Ventura represente aquilo a que a esquerda desistiu de tentar representar: a contestação à crise que deixa os ricos mais ricos e os pobres mais pobres.

3. Abandono da oposição torna-se catastrófico para a esquerda

É inegável que os grandes derrotados da noite eleitoral foram BE e PCP que, se em 2015, ao canalizarem o descontentamento popular que vinha das grandes mobilizações contra a troika, a austeridade e o governo PSD/CDS, concorreram separados e tiveram em conjunto cerca de 1 milhão de votos, elegendo 19 e 17 deputados respectivamente, desta vez somaram 476 mil votos entre as duas candidaturas, elegendo 5 e 4 deputados respectivamente.

Do lado do BE, Mariana Mortágua congratulou-se com o aumento de 30 mil votos face às legislativas de 2022 e a manutenção de um grupo parlamentar de 5 deputados, apesar de ter ficado longe dos melhores resultados do partido, que em 2009, 2015 e 2019 alcançou os 500 mil votos. Para não desmoralizar a sua militância, o Bloco tenta mostrar o copo meio cheio, em vez do copo praticamente vazio, dizendo que o partido “resistiu”, mas não há como esconder o óbvio. Para o BE, trata-se do pior resultado dos últimos 20 anos. No caso do PCP, torna-se ainda mais catastrófico, ao sair das eleições com cerca de 200 mil votos, o seu pior resultado de sempre, pela terceira vez consecutiva, que levou à perda de 1 deputado em Setúbal e de 1 deputado em Beja.

Estes resultados também não são totalmente inesperados, já que há muito se tornou claro para milhares de trabalhadores e jovens que a esquerda parlamentar abandonou o seu papel de oposição e desistiu por completo de apresentar uma verdadeira alternativa, colando-se ao PS para desempenhar o papel de conselheira da governação. Mesmo depois dos maus resultados de 2019, as direções de BE e PCP dedicaram-se a criticar não o PS e a sua política de dar migalhas, mas a “maioria absoluta”, alimentando ilusões de que seria possível um governo PS diferente, que aplicasse medidas às quais o PS sempre se mostrou contrário. No entanto, a esquerda parlamentar continua a mostrar-se incapaz de tirar as devidas conclusões sobre as consequências da sua política nos últimos anos, estando mais rapidamente disposta a tachar de ignorantes ou fascistas as hordas de descontentes que não confiam nas direções destes partidos, do que a alterar o curso de assimilação pelo regime.

Prova disso mesmo é o facto de Mariana Mortágua ter lançado um convite para a esquerda dialogar que, infelizmente, volta a incluir o PS, contribuindo mais uma vez para branquear o PS e a sua governação e para afastar a esquerda da construção de uma verdadeira alternativa a PS e PSD, capaz de dar voz e corpo ao justo descontentamento popular. Assim, a esquerda, em vez de clarificar e educar, volta a confundir os trabalhadores e faz dos seus partidos e militantes um pilar fundamental para a classe dominante do país, sem jamais resolver os problemas estruturais e fazer frente ao crescimento da extrema-direita.

Ao longo dos 50 anos da democracia, o PS foi o maior aliado do PSD na hora de destruir as conquistas que a classe trabalhadora e os setores populares obtiveram no período que durou a revolução dos cravos. O BE e o PCP, que nunca foram capazes de chegar a um entendimento para um programa e um governo que representasse de facto as necessidades dos trabalhadores, voltam a alimentar ilusões de que é possível um governo de esquerda “ progressista” capitaneado pelo PS.

4. Livre fortalece-se como tampão à esquerda do PS

O Livre foi o único partido à esquerda que cresceu, passando de 68 mil em 2022 para quase 200 mil votos e de 1 deputado para uma bancada parlamentar de 4 deputados, igual à do PCP. Congratulamos os seus militantes e simpatizantes pelo resultado eleitoral, porém não podemos deixar de assinalar as enormes divergências que temos com a direção do LIVRE e com o projeto político que este partido representa.

Rui Tavares, desde os tempos em que integrava as listas do BE, sempre defendeu a aproximação do BE ao PS, para procurar uma solução governativa “alternativa à direita”. Os 8 anos de governação de António Costa, primeiro com o apoio da esquerda e depois com maioria absoluta, demonstraram, na prática, que Rui Tavares estava errado, já que não foi possível sequer reverter as medidas mais gravosas das políticas do governo PSD/CDS, como as alterações ao código de trabalho, o desinvestimento nos serviços públicos e o problema da habitação. Que o PS tenha no Livre a muleta que o PSD tem no CDS sempre foi o plano de Rui Tavares e, com estas eleições, ficou um pouco mais perto do objetivo.

Além disso, apesar de tanto falar em democracia e cidadania, é orgulhosamente um defensor acérrimo da UE, que determina a política de austeridade dos governos nacionais, condenando cada vez mais parcelas da população à pobreza, para enriquecer uma elite minoritária de grandes empresários e banqueiros. A mesma UE que se esconde num discurso de paz e estabilidade, mas adota leis anti-imigração e deixa morrer no Mediterrâneo migrantes que fogem da guerra e da fome. O compromisso do Livre é com este projeto liberal e autoritário, ao serviço das classes dominantes mais fortes da Europa.

Basta ver como Rui Tavares, sempre disposto a livrar-se dos princípios, para não aparecer como sendo um “dogmático” , veio defender, sem meias palavras, o “direito” do estado de Israel em se defender da “organização terrorista” Hamas. Lamentamos que Rui Tavares, que tanto gosta de se apresentar como um defensor intransigente dos valores democráticos, se tenha esquecido de que o estado de Israel só foi criado e mantido através de uma limpeza étnica na região da Palestina, que vigora há quase um século.

Rui Tavares é, de resto, sempre o primeiro a defender com fervor este regime e as suas instituições, afirmando repetidamente que os quer salvar, como se ignorasse que são estes os responsáveis por manter a atual ordem que nos oprime e nos explora. Com o discurso de quem quer dialogar com todos os partidos “do campo democrático”, esconde que a maior parte desses parceiros de diálogo são parte do problema, fazendo da moderação que promete conciliar o inconciliável a sua forma de populismo.

Desta forma, o Livre torna-se a voz de um eleitorado de classe média urbana, instruído e moderado, que apesar de desiludido com as sucessivas governações do PS, acaba por assimilar a narrativa da direita sobre o “radicalismo” do BE e PCP, mantendo-se por isso afastado destes partidos, e funciona como tampão que impede a saída de eleitorado do PS para o BE e PCP ou para soluções mais “radicais”, ou seja, verdadeiramente anticapitalistas.

5. As conquistas conseguem-se nas ruas

Apesar de partilharmos as preocupações de muitos ativistas e militantes de esquerda, estamos longe de considerar que este resultado eleitoral demonstre uma viragem irreversível à direita. Pelo contrário, consideramos que a capacidade da esquerda em mobilizar a classe trabalhadora e os setores mais oprimidos e explorados da sociedade continua a ser a única possibilidade para sairmos da crise em que o capitalismo imperialista nos mergulhou.

Perante a recusa de BE e PCP em lutar por um governo dos trabalhadores, independente dos interesses das classes dominantes – ou seja, sem o PS -, é necessário construir uma verdadeira alternativa de esquerda, em torno de um programa que defenda e lute verdadeiramente pelos interesses dos trabalhadores e da juventude. É preciso também retomar as lutas, em defesa da educação e da saúde públicas, contra a especulação imobiliária e pelo direito à habitação, e organizar a luta pelo aumento dos salários e das pensões, por melhores condições laborais e contra o aumento do custo de vida. Para estas tarefas, podem contar com o MAS.

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