Pela primeira vez em 50 anos, o Parlamento celebra oficialmente o 25 de Novembro. À superfície, pode parecer apenas mais uma efeméride, mas o momento político em que acontece, com o governo a aprofundar ataques à lei laboral, aos serviços públicos e às liberdades democráticas diz-nos o contrário.
Por estes dias, repete-se a ideia de que o 25 de Abril e o 25 de Novembro são “duas datas da mesma liberdade” e que o regime nascido da transição é o herdeiro legítimo de Abril – um regime de democracia parlamentar controlado pela burguesia, em que, depois, durante décadas, se foi desmontando passo a passo o que tinha sido conquistado pela mobilização popular.
Não estamos perante um debate académico sobre “datas”. Estamos perante uma disputa política sobre o que é e sobre o que podia ser a “democracia” em Portugal. É precisamente esta dupla falsificação – a que apaga o papel de Novembro na fundação do regime e a que o apresenta como “salvação da liberdade” – que queremos combater.
Verdades e mentiras sobre o 25 de Novembro
Há um aspeto em que a direita que hoje governa é mais sincera do que a esquerda do regime: quando afirma que o regime político vigente nasce do 25 de Novembro e não do 25 de Abril. Essa afirmação é correta. Foi o golpe de 1975 que restabeleceu a hierarquia militar, travou a dinâmica revolucionária, neutralizou a auto-organização popular e abriu caminho a uma democracia liberal como a que temos hoje, funcional ao capitalismo português e ao processo de integração euro-atlântica que se seguiria.
A esquerda institucional evita assumir esta ligação direta porque defende o regime que emergiu dessa derrota, mas quer apresentar-se como herdeira das promessas igualitárias e libertadoras de Abril. Essa ambiguidade produz uma contradição permanente: defendem a ordem política nascida da derrota do processo revolucionário, para a qual o 25 de novembro foi essencial, enquanto evocam Abril como se ele tivesse conduzido naturalmente ao presente. Mas a verdade é simples: sem a interrupção do processo revolucionário, o regime que hoje existe não teria sido possível.
Paralelamente, a direita construiu uma das maiores falsificações históricas do país: a ideia de que Portugal esteve prestes a mergulhar numa ditadura comunista e que o 25 de Novembro “salvou a democracia”. Esta narrativa repete-se hoje no Parlamento e na comunicação social como se fosse um facto óbvio, mas não tem qualquer fundamento.
Não existiu, em 1975, qualquer plano sério do PCP para instaurar um regime à imagem do Leste europeu. O partido seguia as orientações estratégicas de Moscovo, e a própria URSS não tinha qualquer interesse em apoiar uma revolução socialista em Portugal. Depois da Segunda Guerra Mundial, o mundo fora dividido entre esferas de influência, e Portugal estava firmemente integrado no campo ocidental, sob hegemonia da NATO e dos EUA. Para o estalinismo, um processo revolucionário português só criaria tensões indesejadas com Washington e com a Europa Ocidental, contrariando a sua política de “coexistência pacífica”.
Por isso, o PCP nunca se dispôs a romper esse alinhamento internacional. Longe de preparar um golpe, defendia a contenção do ímpeto revolucionário, a disciplina no MFA e uma transição negociada, que preservasse o Estado e evitasse qualquer confronto que pudesse alterar o equilíbrio entre as superpotências. Ao mesmo tempo, o MFA estava longe de ser uma força revolucionária homogénea: desempenhava sobretudo o papel de mediador e travão da pressão vinda de baixo. É essa pressão que a direita procura ocultar.
O 25 de Novembro enquanto golpe contra-revolucionário
Entre 1974 e 1975, Portugal testemunhou a mais profunda experiência de democracia popular da sua história. Nas fábricas, os trabalhadores expulsavam patrões e organizavam a produção; nos bairros, as comissões de moradores decidiam sobre habitação e serviços; no Alentejo, a reforma agrária punha terras improdutivas a trabalhar; nos quartéis, soldados saneavam fascistas e deliberavam coletivamente. Era um processo ainda embrionário, mas real, que punha na ordem do dia a possibilidade de uma democracia fundada no poder dos trabalhadores e na auto-organização social.
O 25 de Novembro deve ser compreendido neste contexto. Foi a operação que permitiu restaurar a autoridade da cadeia de comando militar, neutralizar a crescente autonomia dos trabalhadores e reorientar o país para uma transição liberal, estabilizada posteriormente pela Constituição de 1976 e pelo ciclo de governos PS/PSD que se seguiu. O conflito fundamental não era entre “democracia” e “ditadura”, como hoje se repete. Era entre duas conceções de democracia: a democracia limitada e parlamentar, subordinada ao capital, e a democracia social e direta que estava a emergir nas ruas, nos locais de trabalho e nos campos.
Assim, o objetivo do golpe de Novembro não foi impedir uma ditadura, mas derrotar esse processo e restaurar o controlo da burguesia sobre o Estado e a sociedade. O “grupo dos nove”, a direção do PS, os setores conservadores das Forças Armadas e a burguesia portuguesa convergiram neste objetivo comum e a ausência de uma resposta militar coordenada por parte dos setores de esquerda do MFA, assim como a política defensiva do PCP, que recusou armar milhares de militantes, facilitou o desfecho. A partir da derrota dos organismos de base, seguiram-se décadas de privatizações, regressos das famílias monopolistas, ataques sucessivos à legislação laboral e às concessões que o poder político teve de aceitar sob pressão da revolução.
Quando hoje a direita afirma que “sem 25 de Novembro não haveria esta democracia”, diz sem querer uma verdade fundamental: a democracia que eles defendem – esta democracia dos patrões, das desigualdades estruturais e da corrupção sistémica – só foi possível porque a revolução foi derrotada. É isso que a direita celebra hoje com orgulho. É isso que o governo comemora com desfiles militares e rosas brancas. E é isso que a esquerda institucional prefere fingir que não vê.
O regime de Novembro e a crise do presente
A extrema-direita não cresce porque “exagerámos em Abril”. Cresce porque o regime nascido de Novembro esvaziou a participação popular, destruiu direitos conquistados pela luta, transformou a democracia num ritual eleitoral de quatro em quatro anos e entregou a economia aos monopólios, às privatizações e à lógica do mercado.
A crise social e política que atravessa Portugal, com salários miseráveis, habitação inacessível, degradação do SNS, precariedade estrutural, corrupção sistémica e militarização, é expressão direta da derrota daquele processo revolucionário. Ao contrário do que diz André Ventura, não é Abril que explica o presente: é Novembro.
Por isso, a disputa simbólica sobre o 25 de Novembro é tão feroz. Porque quem controla a memória controla o horizonte político do país. E hoje, quando o governo procura fechar o ciclo do “pacto social” das últimas décadas, precisa de normalizar – e até celebrar – a derrota das experiências populares que mostraram que outra forma de democracia é possível.
Para nós, trabalhadores e jovens que enfrentam salários impossíveis, rendas abusivas, serviços públicos fragilizados e uma extrema-direita em ascensão, a data decisiva não é Novembro. É Abril. Não o Abril institucionalizado, ritualizado e despolitizado que o Parlamento invoca. Mas o Abril vivo, popular, coletivo, construído pelas mãos daqueles que ousaram tomar nas suas mãos o destino do país.
Querem que celebremos o fim da Revolução como se fosse a sua vitória. Mas a verdadeira memória de Abril habita na luta dos trabalhadores, nos sindicatos combativos, nas greves e mobilizações. É essa força que precisa ser retomada, não para recordar o passado, mas para terminar o que ficou por fazer.
Cinquenta anos depois, o desafio permanece: reconstruir a força social que pode enfrentar os patrões e os seus governos, derrotar a extrema-direita e abrir novamente um caminho de democracia real, de democracia dos trabalhadores: uma saída verdadeiramente socialista, igualitária e livre. É essa a luta que assumimos hoje. Junta-te a nós.