Já há muitas décadas que sucessivos governos sonham com a privatização da segurança social. No entanto, este tema é particularmente sensível em Portugal, já que não há forma de acabar com a Segurança Social sem que isso afetasse gravemente os pensionistas portugueses – um bloco de eleitores importante. Agora, o governo da AD dá novo fôlego à velha ambição neoliberal das elites capitalistas — transformar a Segurança Social pública num negócio privado. Depois de décadas de ataques encobertos sob o PS e o PSD, a direita volta agora à carga com um plano disfarçado de modernização
O falso argumento da insustentabilidade
Em Janeiro deste ano, o Tribunal de Contas alertou sobre o risco de sustentabilidade da Segurança Social. Como é sabido, a Segurança Social fechou o ano de 2024 com um excedente de quase seis mil milhões de euros – graças principalmente à imigração no país. Como esses valores não servem como justificação para a privatização da Segurança Social, o Tribunal de Contas acabou por acrescentar as despesas da Caixa Geral de Aposentações. Esta manobra tem um objetivo claro: criar um cenário artificial de crise para abrir caminho à privatização.
A Caixa Geral de Aposentações (CGA) foi fechada em 2006, com vista ao seu desmantelamento. Isto significa que, desde 2006, não há novas pessoas a entrar para a Caixa Geral de Aposentações. O sistema de repartição implementado pela CGA necessita que a população ativa contribua para pagar as pensões da população reformada. Passados quase 20 anos desde a última pessoa a entrar na CGA, não é de admirar que a CGA esteja completamente desbalanceada neste rácio, o que faz com que tenha de ser o Orçamento do Estado a garantir verbas para os reformados da CGA.
O Tribunal de Contas apresenta então o prejuízo de 254 mil milhões contraídos pela CGA e usa-o como argumento para questionar o regime público de pensões, apesar dos lucros apresentados pela Segurança Social. Mas farsa da “sustentabilidade” não termina aí. O próprio Orçamento do Estado para 2026 é omisso sobre a transferência de 355 milhões de euros para o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) – a reserva que deveria garantir o pagamento futuro das pensões. Essa omissão não é um lapso técnico: é um sinal político.
O Governo da AD não reforça o sistema público, mas trata o fundo das pensões como caixa do Estado, vulnerável às manobras financeiras e à especulação. Ao desviar recursos da Segurança Social e esconder as transferências obrigatórias, o Governo mina deliberadamente a sustentabilidade que finge defender, preparando o terreno para justificar novas “reformas” e a entrega das pensões ao mercado.
A estratégia: privatizar por dentro e sem dizer o nome
Face ao relatório alarmista do Tribunal de Contas, a Ministra do Trabalho e da Segurança Social, Maria do Rosário Ramalho, anunciou a criação de um grupo de trabalho para “analisar e propor medidas” com vista à “modernização” da Segurança Social. À cabeça deste grupo de trabalho a ministra colocou o economista Jorge Bravo, consultor da Associação dos Fundos de Pensões Privados (APFIPP). Trata-se de um claro conflito de interesses; “é colocar a raposa no galinheiro” afirmou, corretamente, o economista Eugénio Rosa. O governo entrega o futuro das pensões públicas nas mãos do lobby que vive de as destruir. É a fusão – ou a promiscuidade – entre o poder político e o capital financeiro.
Já se sabe, à partida, algumas das ideias a serem discutidas pelo grupo de trabalho. A mais importante é a criação de um mecanismo voluntário de capitalização. Isto significa que, paralelamente ao sistema de repartição – em que a população ativa contribui diretamente para as pensões atuais –, o governo permitia os contribuintes optarem por um outro regime de capitalização individual. Neste novo sistema, o contribuinte coloca uma parte do seu rendimento numa bolsa individual a ser utilizada como fundo de capitalização no mercado acionista; daí viria, no futuro, a sua pensão.
A estratégia do Governo é apresentar esta nova opção como voluntária e, lentamente, empurrar os contribuintes para esta opção. Assim, transitaríamos de um regime público da Segurança Social para um regime privado, evitando o estrondo político que seria a privatização, de um momento para o outro, da Segurança Social. Este é também o método com que a Segurança Social foi privatizada noutros países. É a velha táctica liberal: destruir o sistema público por dentro, para depois declarar que já não funciona.
Isto é brincar com o dinheiro dos pensionistas
Este novo regime de capitalização, proposto pelo governo, vai pôr em causa a sustentabilidade da Segurança Social, ao desviar uma parte da população ativa do sistema de repartição. Não há como uma mudança deste tipo não acabe por afetar as pensões já em vigor.
A par disso, o Governo confirma para 2026 um aumento médio das pensões de apenas 2,8% – ou seja, abaixo da inflação prevista – e deixa o prometido “bónus” dependente de uma eventual “folga orçamental”. É mais um truque de contabilidade para mascarar cortes reais no poder de compra dos reformados. Sob o pretexto da “sustentabilidade”, o Governo poupa milhões à custa dos pensionistas, enquanto mantém intactas as benesses fiscais aos grandes empresários e banqueiros. A mesma lógica que fala em “modernizar” a Segurança Social serve para degradar o regime público e abrir espaço aos fundos privados.
Apesar da retórica otimista pregada por economistas liberais, o sistema de capitalização individual é um risco para os futuros pensionistas. Trata-se de jogar à sorte com o dinheiro que colocam de lado. Este já é o regime praticado nos Estados Unidos da América, e coloca – particularmente a população mais vulnerável – diretamente dependente da imprevisibilidade dos mercados acionistas.
O capitalismo vive com crises económicas cíclicas. Neste momento, vivemos ainda sobre a Crise Económica de 2008 – que ainda não foi ultrapassada – sobre a crise do custo de vida provocada pela pandemia de 2020 e a guerra na Ucrânia em 2022. O mercado accionista só não está mais no vermelho porque vive, neste momento, sob uma gigante bolha financeira da Inteligência Artificial. Ao entregar o destino das pensões aos mercados, o governo transforma um direito social num produto financeiro. E quando a próxima crise rebentar — como todas rebentam no capitalismo — serão os trabalhadores e pensionistas a pagar, não os acionistas.
Unir trabalhadores e pensionistas contra o fim da Segurança Social
De vez em quando, lá ouvimos umas críticas a esta reforma vindas da esquerda parlamentar – e, por vezes, até do PS. Mas estas críticas não passam de acusações atiradas no parlamento, sem nenhuma consequência. Nem o PS, que abriu o caminho para esta reforma, nem o BE e o PCP, que se limitam a discursos parlamentares, estão a organizar uma verdadeira resistência.
A privatização em curso da Segurança Social tem de ser travada pela raiz. É uma ameaça, não só aos atuais pensionistas, como também aos que virão no futuro. Não nos podemos deixar enganar pelo caráter supostamente “voluntário” desta transição – a reforma da segurança social afetará todos.Por isso a luta contra esta reforma não se pode ficar apenas para os pensionistas. É uma luta que tem de englobar todos.
A destruição da Segurança Social não se travará com discursos, mas com mobilização nas ruas e nos locais de trabalho. É preciso construir um movimento unitário e combativo de trabalhadores e pensionistas, independente do governo e das direções burocráticas da esquerda parlamentar, da CGTP e da UGT, que têm limitado a resistência a jornadas simbólicas.
Nenhum cêntimo das nossas pensões para os fundos privados! Reforçar o sistema público, taxar as grandes fortunas e o capital financeiro, garantir pensões dignas para todos!
Só um governo dos trabalhadores e do povo, apoiado na mobilização e auto-organização popular, poderá pôr fim ao saque neoliberal e defender a Segurança Social como conquista histórica da nossa classe.