Pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSL), secção da UIT-QI na Venezuela
O anúncio da concessão do Prémio Nobel da Paz a María Corina Machado desencadeou não só controvérsia, mas também profundas questões sobre a natureza e os objetivos de um prémio que, em teoria, deveria homenagear aqueles que dedicam a sua vida à construção da paz, da justiça e da vigência dos direitos humanos.
No atual contexto nacional, caracterizado pela aplicação de um ajuste capitalista brutal para que a crise recaia sobre os ombros do povo trabalhador, o governo ditatorial de Nicolás Maduro impõe uma política de terror contra o povo pobre. Diante dessa ofensiva, é importante ressaltar que somente os trabalhadores e o povo venezuelano estão chamados a organizar a mobilização popular para derrotar o governo e restabelecer seus direitos e conquistas, sem a interferência de nenhuma potência imperialista.
No entanto, ao examinar a trajetória política de Machado — o seu apoio incondicional às sanções imperialistas, a sua promoção da intervenção militar estrangeira e o seu apoio ao governo criminoso e genocida de Israel — fica evidente que estamos diante de uma das decisões mais contraditórias da história recente do comité norueguês.
A história do Prémio Nobel da Paz está repleta de decisões controversas que revelam a sua instrumentalização política.
Os princípios universais que sustentam o referido prémio são: o direito à autodeterminação dos povos, a rejeição da intervenção militar e a solidariedade com as vítimas da violência sistémica. Estes princípios revelam que o Nobel atribuído a Machado não só os contradiz, como perpetua uma lógica em que a paz se torna um instrumento de legitimação do poder hegemónico imperialista.
Um dos pilares da estratégia política de María Corina Machado tem sido o seu apoio aberto e entusiástico às sanções imperialistas impostas pelos Estados Unidos e pela União Europeia contra a Venezuela. Estas medidas, apresentadas como mecanismos para pressionar o governo de Nicolás Maduro, tiveram consequências devastadoras para a população civil, afetando diretamente o acesso da população a alimentos, medicamentos e serviços básicos, sem conseguir qualquer mudança política no país.
O relatório da relatora especial da ONU, Alena Douhan, publicado em 2024 após a sua missão na Venezuela, é contundente: as sanções unilaterais tiveram “efeitos catastróficos” sobre os direitos humanos fundamentais. Douhan documentou como essas medidas coercivas levaram ao colapso de setores vitais como saúde, alimentação, acesso a medicamentos e infraestrutura básica. De acordo com o relatório, as sanções impediram a Venezuela de adquirir insumos médicos, peças de reposição para hospitais e alimentos, afetando desproporcionalmente os mais vulneráveis: crianças, idosos e pessoas com doenças crónicas.
Os números falam por si: entre 2017 e 2020, mais de 40.000 pessoas teriam morrido como consequência indireta do bloqueio económico, de acordo com estimativas do economista Jeffrey Sachs e do Centro de Investigação Económica e Política (CEPR) de Washington. Estas não são simples estatísticas, mas vidas humanas concretas, sacrificadas em nome de uma estratégia política que Machado defendeu veementemente em fóruns internacionais.
Como pode o Prémio Nobel da Paz premiar uma figura que promoveu medidas que punem coletivamente toda uma população? Onde está a paz no sofrimento de famílias que não têm acesso a diálise, insulina ou tratamentos oncológicos porque as empresas farmacêuticas não podem comercializar com a Venezuela por medo de represálias dos Estados Unidos?
Além das sanções, María Corina Machado foi mais longe ao solicitar repetidamente a intervenção militar estrangeira na Venezuela. As suas declarações públicas não deixam margem para ambiguidades. O seu apoio manifesto às políticas de Trump — com quem disputava o prémio — chegou ao ponto de Donald Trump declarar que era ele quem merecia o Prémio Nobel da Paz pelos seus esforços na resolução de conflitos armados como os da Palestina e da Ucrânia, uma demonstração do quão longe pode chegar o ego e a megalomania do líder do imperialismo mais criminoso da história.
Na Cimeira Concordia de 2014, Machado afirmou: “Precisamos de uma coligação internacional que apoie a mudança na Venezuela”. Em 2019, no meio da crise política que se seguiu ao reconhecimento internacional de Juan Guaidó como ‘presidente encarregado’, Machado declarou em entrevistas que “todas as opções devem estar sobre a mesa”, uma fórmula que, na linguagem diplomática dos Estados Unidos, é sinónimo de intervenção militar.
Esta postura não só é profundamente antidemocrática, como também contraria os princípios da soberania do povo venezuelano: a não intervenção nos assuntos internos dos Estados e o respeito pela autodeterminação dos povos. Ao apelar às potências imperialistas estrangeiras para resolver conflitos políticos internos, Machado reproduz a lógica intervencionista que devastou a América Latina durante o século XX: desde a invasão dos Estados Unidos à República Dominicana em 1965, passando pelo golpe contra Salvador Allende no Chile em 1973, até à invasão do Panamá em 1989.
A história da nossa região ensinou-nos, com sangue e dor, que nenhuma intervenção militar estrangeira traz democracia nem paz. O que ela traz são bombardeios, deslocamentos em massa, violação dos direitos humanos, destruição da infraestrutura e aprofundamento das feridas sociais. Basta olhar para os resultados das intervenções no Iraque, na Líbia ou no Afeganistão para compreender a magnitude do desastre.
Promover a intervenção militar não é um ato de coragem democrática, é um convite à guerra. E premiar com o Nobel da Paz quem promove a guerra é uma contradição tão obscena quanto insustentável.
Genocídio na Palestina: o silêncio cúmplice
Outro aspecto inquietante da trajetória de María Corina Machado é o seu apoio público e explícito ao criminoso primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu e ao genocídio levado a cabo em Gaza e na Cisjordânia. Num contexto em que organizações internacionais de direitos humanos como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch acusaram Israel de crimes de guerra e apartheid, e em que o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) analisa o caso apresentado pela África do Sul em 2024 por alegado genocídio contra o povo palestino, o apoio de Machado a Netanyahu é eticamente inaceitável.
Os números da violência em Gaza desde 7 de outubro de 2023 são assustadores: os bombardeamentos lançados por Israel causaram a morte de pelo menos 67.967 pessoas, na sua grande maioria civis, entre as quais cerca de 20.179 crianças e mais de 10.000 mulheres (cerca de 72%), a que se somam mais de 170.179 feridos (incluindo pelo menos 40.500 crianças e 19.000 mulheres) e mais de 14.400 desaparecidos, o que elevaria ainda mais o número de mortos, entre os quais 4.400 mulheres e crianças. Trata-se da maior perda de vidas humanas desde que se tem registo de conflitos entre a Palestina e Israel, sendo as mulheres e as crianças as principais vítimas.
O bloqueio total de alimentos, água, eletricidade e combustível imposto aos dois milhões de habitantes de Gaza foi classificado por especialistas da ONU como “punição coletiva”, uma grave violação dos direitos humanos que constitui crimes contra a humanidade.
A Amnistia Internacional, no seu relatório de 2022, concluiu que Israel mantém um “sistema de apartheid” contra os palestinianos, caracterizado pela dominação, fragmentação territorial, segregação e opressão sistemática. A Human Rights Watch chegou a conclusões semelhantes. Perante este panorama, o apoio de Machado a Netanyahu não é apenas um gesto político questionável, mas uma cumplicidade moral com políticas de extermínio.
Pode alguém que apoia publicamente um governo acusado de genocídio ser reconhecido como promotor da paz? A resposta é óbvia. O Nobel a Machado não só trai as vítimas palestinas, como normaliza a violência estatal e a ocupação militar como ferramentas legítimas das potências imperialistas.
O Nobel como instrumento político ao serviço do imperialismo
A história do Prémio Nobel da Paz está repleta de decisões controversas que revelam a sua instrumentalização política. Em 1973, o comité norueguês atribuiu o prémio a Henry Kissinger, arquiteto do bombardeamento do Camboja e cúmplice do golpe de Estado no Chile, decisões que causaram a morte de centenas de milhares de pessoas. Em 2009, Barack Obama recebeu o prémio apenas nove meses após assumir a presidência dos Estados Unidos, enquanto continuava as guerras no Iraque e no Afeganistão e expandia o programa de assassinatos com drones.
O historiador norueguês Fredrik Heffermehl, na sua obra ‘A vontade de Alfred Nobel: O que o Prémio Nobel da Paz realmente pretendia?’, denunciou que os comités do Nobel “traíram a vontade pacifista de Alfred Nobel” ao premiar figuras ligadas ao poder militar ou económico global, em vez de reconhecer aqueles que lutam contra o militarismo e pelo desarmamento.
O caso de Machado inscreve-se nessa tradição: premiar uma figura funcional aos interesses do imperialismo gringo, apresentando-a como “defensora da democracia”, enquanto as suas posições contradizem os princípios elementares da paz, da justiça social e da soberania popular. É evidente que um dos objetivos de entregar o prémio a María Corina Machado é reativar uma liderança que tem vindo a enfraquecer-se ultimamente, como consequência da sua recusa e incapacidade de mobilizar as suas bases. Tanto o governo como a oposição patronal temem a mobilização, porque sabem que podem ser ultrapassados.
O Prémio Nobel da Paz a María Corina Machado representa a perda de legitimidade de um prémio que, na sua origem, deveria homenagear aqueles que dedicaram a sua vida à construção da paz e da justiça. A verdadeira paz não se constrói com sanções que matam de fome os povos, nem com apelos à intervenção militar, nem com o apoio a governos que cometem genocídios. A paz constrói-se a partir de baixo, a partir da resistência quotidiana daqueles que lutam contra o bloqueio, a ocupação, a desigualdade e por melhores condições de vida para as grandes maiorias sem recursos nem reconhecimento internacional.
Reivindicar a paz é reivindicar a memória dos mortos na Palestina, dos venezuelanos mortos por falta de medicamentos e nas mãos da repressão do governo ditatorial de Nicolás Maduro, dos povos que resistem ao imperialismo sem aplausos nem estatuetas douradas. Essa é a paz que merece ser honrada. Não aquela que recompensa aqueles que a negam. A verdadeira paz só será possível com o fim do capitalismo imperialista.