Nicolás Núñez, dirigente de Izquierda Socialista/FIT Unidad
É inegável que o primeiro discurso de Javier Milei como Presidente da Argentina no Fórum Económico de Davos teve um impacto. Milei não disse “acho que o Ocidente está em perigo”, como quem introduz uma opinião para abrir um debate. Em vez disso, fazendo-se passar por um messias salvador, disse: “está em perigo porque aqueles que supostamente defendem os valores do Ocidente se vêem cooptados por uma visão do mundo que – inexoravelmente – conduz ao socialismo”. Para espanto do seu auditório, o “primeiro presidente libertário da história” (como ele próprio se intitula) disse em seguida a alguns dos mais poderosos governos de patrões do planeta que estavam, “por erros de enquadramento teórico ou ambição de poder”, a capitular perante o socialismo internacional. O que ninguém, absolutamente ninguém, sabia.
Abordaremos o seu discurso partindo da síntese de que, para além de várias divagações, a sua essência é um apelo às grandes burguesias do mundo para que se unam para esmagar as lutas da classe trabalhadora e os movimentos democráticos de luta. Por detrás da definição de rejeição dos movimentos de mulheres e socio-ambientais, e com isso do consenso científico sobre o aquecimento global, de passagem, e da tentativa de fazer passar por “socialismo” todo o tipo de ação estatal, está o apelo a generalizar a nível mundial o que pretende fazer (e apostamos que não conseguirá) no nosso país [Argentina]: um plano de tudo ou nada e de repressão em defesa dos super-lucros capitalistas.
O que é o Fórum de Davos?
Há cinquenta anos que os empresários mais poderosos do planeta se reúnem com os governos patronais cúmplices para construir um “Fórum Económico Mundial” que serve de tanque ideológico para justificar todos os planos de ajustamento e ataques à classe trabalhadora mundial. Já estiveram presentes Rockefeller, Bill Gates, o Presidente de França, Emmanuel Macron, Pedro Sánchez de Espanha, e representantes de todas as potências mundiais.
Qual é a origem da ameaça que Milei aponta? Acontece que, nas últimas décadas, o crescimento das lutas operárias e populares e, em particular, de movimentos como os movimentos ambientalistas, de mulheres, de povos indígenas e de nacionalidades oprimidas, alcançaram tanto conquistas como demandas instaladas, e os senhores do mundo, inclusive dos chefes de Estado de algumas das potências imperialistas, tiveram que ter diante de si um duplo discurso como parte de sua política de sustentação da dominação e da exploração. Assim, por exemplo, as Nações Unidas aprovaram uma “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável” com alguns objectivos com os quais os governos dos patrões se comprometem em abstrato na luta contra a desigualdade, a pobreza e as alterações climáticas que fazem com que a extrema-direita como Milei se incomode, dado que poderiam representar algum tipo de intervenção sobre a busca de lucros do grande capital.
O autoproclamado “salvador” Javier deslocou-se então a Davos para exigir que o Fórum não se deixasse desviar por uma agenda que, supostamente preocupada com alguns direitos das mulheres e com as alterações climáticas, abriria as portas ao socialismo. Mas também foi mais longe: “não se deixem intimidar”, disse aos empresários mais poderosos do mundo, dos quais afirmou que o nosso país [Argentina] seria um aliado. “Deixem que as grandes multinacionais do mundo façam e desfaçam o que quiserem”, o que já vimos expresso na DNU [Estado de Emergênica] e na Lei Omnibus no nosso país, essa é a liberdade máxima pela qual luta o “libertarianismo” de Milei.
Mas será que os participantes de Davos estão assustados? Aparentemente não e, na verdade, nem mesmo a pandemia os comoveu. Um estudo da ONG de investigação sobre a desigualdade global Oxfam, divulgado no início do Fórum, mostrou que a riqueza dos cinco homens mais ricos do mundo duplicou desde 2020, enquanto, ao mesmo tempo, a riqueza dos 60% mais pobres do mundo (5 mil milhões de pessoas) diminuiu. De facto, as 148 maiores empresas do mundo obtiveram lucros recorde nos doze meses até junho de 2023, representando 52% mais do que tinham ganho entre 2018 e essa data. Por sua vez, no mundo supostamente ameaçado pelos “Estados” e pelo “socialismo”, o valor de mercado das dez maiores empresas do planeta ultrapassa a soma do Produto Interno Bruto de todos os países de África e da América Latina juntos. Como veremos, a ameaça, não para o “mundo ocidental”, mas para toda a humanidade e para todo o planeta, não é o socialismo que hoje não existe, mas o capitalismo que nos está a atacar.
Será que o mundo nunca esteve melhor?
É preciso dizer que a capacidade do Presidente para inventar números é espantosa. Comecemos com a afirmação descarada de Milei de ter a certeza de qual era o PIB per capita do mundo (o valor acrescentado total gerado na economia dividido pela sua população, geralmente medido em torno do ano de atividade) no ano zero, e que este se teria mantido relativamente estável até 1800. Como não temos forma de saber como conseguiu conciliar o sistema contabilístico do Império Romano com o dos povos e tribos nativas da América e de África, e com a dinastia chinesa de há dois milénios, optamos por pensar simplesmente que usa o método clássico de baralhar números para mentir enquanto finge estar a dizer algo inteligente.
Se o objetivo é argumentar que no século XIX, com a ascensão do capitalismo, a humanidade desenvolveu as suas forças produtivas (a ligação entre o que a humanidade produz e a natureza através da tecnologia) como nunca antes na sua história, isso é algo que até está escrito no “Manifesto Comunista” de Marx e Engels, sem ter de andar a inventar estatísticas ou a embelezar um sistema de exploração. A questão é que o capitalismo demonstrou que é possível produzir mais riqueza e ao mesmo tempo aumentar a pobreza.
Depois, Milei voltou com a mentira repetida de que a Argentina entrou no século XX como o país mais rico do mundo, algo que não resiste a qualquer análise e que, em todo o caso, a relativa opulência da oligarquia fundiária não devia esconder o facto de que enormes parcelas da população trabalhadora sofriam de subnutrição, como mostrava o relatório de Bialet Massé sobre “O estado das classes trabalhadoras no interior da república”, de 1904. Milei conta uma farsa ao dizer que, como a Argentina teria tomado o caminho do “coletivismo” a partir do século XX, teríamos nos afastado da riqueza que se expandiu (para ele) na maior parte do mundo.
Porque, afinal, segundo o Presidente argentino, “o mundo é hoje mais livre, mais rico, mais pacífico e mais próspero do que em qualquer outro momento da nossa história“. Vamos dar um passo de cada vez.
Já dissemos que comparar épocas históricas com níveis de desenvolvimento das forças produtivas e das reivindicações sociais completamente diferentes é um exercício algo anacrónico. Mas, para além disso, nas horas anteriores a este discurso em que Milei fala de “paz”, o Estado genocida de Israel estava a bombardear o bairro do Hospital Nasser, o último serviço de urgência operacional que trata das centenas de vítimas em Gaza dos bombardeamentos e disparos diários do exército de ocupação. Não muito longe de Davos, na Suíça, a Ucrânia continua a resistir à invasão de Putin. E não deve haver tanta confiança neste espírito pacifista do capitalismo, porque os próprios governos imperialistas centrais estão a aumentar os seus orçamentos de armamento de ano para ano.
Por outro lado, já vimos como a “riqueza” é distribuída. Vejamos mais um dado do relatório da Oxfam: de 2019 até agora, 4,8 mil milhões de pessoas ficaram mais pobres, enquanto as pessoas com uma riqueza superior a mil milhões de dólares aumentaram a sua riqueza em 34%, triplicando o nível da inflação global. Consegue imaginar o seu salário a triplicar a inflação? Bem, não. Com este sistema, isso só acontece aos tipos que Milei quer “proteger do socialismo”.
Se estamos a falar de “liberdade”, hoje em dia uma grande parte da população mundial vive sob regimes que nem sequer correspondem às considerações de liberdades democráticas burguesas que Milei diz defender: temos monarquias petrolíferas; ditaduras capitalistas vestidas de vermelho como a China; regimes semi-ditatoriais com perseguição total à oposição em todo o lado; ou, por todo o mundo, temos governos fantoches ou de patrões muito fracos, geridos pelas potências imperialistas e multinacionais, sem soberania e, portanto, sem verdadeira liberdade política. E digamos de passagem que o libertarianismo quer proibir os protestos e fechar o congresso no seu país.
“Prosperidade”, diz Milei, aventurando que se o capitalismo fosse deixado “livre”, “feliz” seria o futuro. Mais uma vez, a realidade: os 1% mais ricos do mundo detêm 43% dos activos financeiros globais e são responsáveis por emissões de gases com efeito de estufa equivalentes às geradas pelos dois terços mais pobres da humanidade. Estas emissões de gases com efeito de estufa (existe um consenso científico esmagador sobre este facto) estão a ameaçar a habitabilidade de todo o planeta em resultado do aquecimento global. Centenas de milhares de pessoas já foram obrigadas a abandonar as suas casas devido aos efeitos da subida das temperaturas, e este fenómeno só irá aumentar. Não há prosperidade num planeta morto.
Da ameaça à esperança do socialismo
Retomando o que acaba de dizer: a concentração da riqueza, o aumento das desigualdades, a fome, o facto de cada vez mais pessoas não conseguirem fazer face às despesas, o aumento dos conflitos armados, a destruição dos ecossistemas e da habitabilidade do planeta, tudo isto está associado ao sistema mundial capitalista de exploração que Milei quer proteger a todo o custo. É por isso que há uma ponta de verdade na sua preocupação. Porque, de facto, para lutar contra as alterações climáticas é preciso lutar contra o capitalismo, para erradicar todas as formas de opressão é preciso lutar contra o capitalismo e para acabar com a exploração e a desigualdade social é preciso lutar contra o capitalismo. Mas nenhuma “Agenda 2030”, muito menos o “Fórum de Davos”, vai fazer isso. Mas nós lutamos por essa tarefa a partir do socialismo revolucionário, no calor das lutas operárias e populares de milhões, que em nosso país e no mundo rejeitam os planos de ajuste e as políticas dos governos capitalistas.
Neste quadro, é fundamental a luta política para explicar a manipulação que faz Milei ao tentar culpar o socialismo pelos problemas que temos, quando o socialismo é um sistema que nunca existiu. Houve revoluções e países onde os meios de produção foram temporariamente arrancados à classe capitalista, mas o socialismo só pode existir à escala global depois de o poder das multinacionais e da burguesia no seu conjunto ter sido aniquilado. Desde a Revolução Russa até agora, tivemos mais de um século em que os trabalhadores travaram lutas monumentais contra o poder político da burguesia, mas até agora sem sucesso. É o capitalismo que tem de assumir a responsabilidade pelas aberrações do presente.
Milei compila todas as mentiras que foram escritas sobre as experiências revolucionárias do século passado e tenta manchá-las a todas por detrás dos crimes do estalinismo, ou mais recentemente com as experiências de Hugo Chávez e Nicolás Maduro na Venezuela ou de Daniel Ortega na Nicarágua. Quando na realidade foi a própria esquerda revolucionária, e a corrente trotskista em particular (que também foi perseguida e o próprio Trotsky assassinado pelo estalinismo) que travou e continua a travar uma tremenda batalha política contra esses aparelhos burocráticos e pró-capitalistas. Mas, além disso, Milei esconde o facto de que foi apenas graças a ter atacado o capitalismo, e expropriado a burguesia, que países extremamente pobres, com pouco desenvolvimento tecnológico e produtivo, famintos e com uma população com alto nível de analfabetismo, puderam livrar-se do imperialismo e garantir um melhor nível de vida para a sua população.
Pensemos, por exemplo, na Rússia (após o êxito da guerra civil e mesmo após a morte de Lenine e a expulsão de Trotsky), na China ou em Cuba. Em todos estes países, ficou por resolver a tarefa de acabar com a casta burocrática estalinista, maoísta, castrista e os regimes de partido único que oprimiam os trabalhadores e levavam ao regresso do capitalismo e à perda dos progressos alcançados.
Por tudo isto, e em suma, é por tudo isto que hoje continuamos desde a Izquierda Socialista/Unidade FIT, lutando em todo o mundo por governos de trabalhadores que avancem para o socialismo com plena democracia para o povo trabalhador, planificando democraticamente a economia, tomando o controlo dos principais meios de produção, rompendo com as agências de endividamento permanente que nos saqueiam, e acabando com o poder de todas as multinacionais que se esfregam em Davos, a fim de dispor dos instrumentos necessários para garantir que toda a riqueza gerada esteja ao serviço do desenvolvimento da humanidade, para que haja efetivamente paz entre os povos e para que haja um futuro de verdadeira liberdade que valha a pena viver.
Essa luta começa hoje no nosso país, fazendo avançar a mobilização contra o Plano Serra Elétrica, a DNU, a Lei Omnibus e o Protocolo de proibição de protesto. Tomámos uma greve da CGT e agora temos de lutar pela continuidade do plano de luta até que todas as reformas reaccionárias caiam. Promovendo a máxima unidade entre aqueles que lutam a partir dos seus locais de trabalho, da cultura, do movimento de mulheres e dissidentes, do movimento ambientalista, dos direitos humanos, da educação e da ciência, podemos parar este governo. E desta forma, podemos também demonstrar que, ao contrário do que aponta Milei, a Argentina não será um país aliado dos empresários de Davos, mas pelo contrário, um país solidário com as lutas que os enfrentam em todo o mundo.