Kamala Harris: nova cara, mesma política

6 de Agosto, 2024
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Nenhuma solução virá dentro de dentro do partido Democrata. O que é necessário é a rutura com o partido Democrata e começar a construção de um novo partido dos trabalhadores.

Dentro de pouco mais de 3 meses, os Estados Unidos irão eleger um novo presidente. Isso é das poucas certezas que se consegue ter destas eleições que já se mostram tão atribuladas. Só no último mês tivemos, desde um debate desastroso que revelou o estado senil em que se encontra o imperialismo americano, os apelos a que Biden abandonasse a corrida, a tentativa de assassinato de Donald Trump e, finalmente, a desistência de Biden e a entrada de Kamala Harris

Ala Trumpista amarra Republicanos

Tivemos também, neste primeiro mês, a convenção Republicana, que oficializou o nome de Donald Trump – e o seu vice, J.D. Vance – na candidatura dos Republicanos à Casa Branca. O que saiu dessa convenção foi a garantia da consolidação do poder da ala trumpista dentro do partido republicano. Não houve nenhuma voz discordante, e mesmo republicanos que, no passado recente, se colocavam contra Donald Trump – como a sua antiga embaixadora nas Nações Unidas, Nikki Haley, ou mesmo o próprio Vance – elogiam agora Donald Trump. A tentativa de assassinato ao antigo presidente serviu também para elevar o misticismo à volta de Trump e consolidar, ainda mais, a sua influência na base do partido.

Não deixa de ser notória a ausência de quadros que estiveram na administração de Trump há 4 anos atrás – em específico o seu vice Mike Pence e John Bolton – que, em conjunto com todo um setor de Republicanos, foram encostados para canto.

Caos no partido Democrata

Por seu lado, o partido Democrata ainda não oficializou a sua candidatura à Casa Branca. Ao contrário do que tradicionalmente acontece, este ano a direção do partido impediu a realização das primárias – processo no qual se elege o candidato. Proibiu a realização de debates e, em alguns estados, impediu a participação de outros candidatos que não Biden.

A posição da direção do partido era clara: o candidato seria Joe Biden independentemente do que a base quiser. Isto, apesar de Biden ter prometido que seria um presidente de um só mandato. Na realidade, o partido Democrata receava que a ala “esquerdista” do partido apresentasse uma candidatura – podendo repetir o sucesso inesperado de Bernie nas primárias de 2016 e 2020.

Mas o partido Democrata não conseguiu mascarar a desastrosa prestação de Biden no debate com Donald Trump, e as vozes para que Biden saísse da corrida foram-se tornando cada vez mais difíceis de ignorar – com quadros centrais do partido e importantes financiadores a pedir a sua demissão. Depois de três semanas a negar o inevitável, Biden desiste da corrida e lança o seu apoio à sua vice-presidente, Kamala Harris.

Nova cara, mesma política

Com a entrada de Kamala Harris, o discurso da direção do partido deu um giro de 180º. Biden deixou de ser o único que conseguiria derrotar Donald Trump e passou a ser Kamala. De fora ficou uma reflexão sobre a sua fraca participação nas primárias de 2020, o que a levou a desistir da corrida ainda antes de ter começado.

O anúncio de Kamala Harris – uma mulher negra e sul-asiática – como candidata pelo partido Democrata cria, inevitavelmente, ilusões, num setor da esquerda, de que esta candidatura seja diferente daquela apresentada por Joe Biden. O apoio de figuras do pop – como Beyoncé e Charli XCX – consolidaram esta imagem de uma Kamala mais jovem e dinâmica. Mas, como não podia deixar de ser, trata-se apenas de uma mudança de marketing político, mantendo a plataforma de Biden.

O passado de Kamala é revelador. Enquanto Procuradora-geral da Califórnia, ela manteve pessoas presas mesmo depois do Supremo Tribunal apelar à redução da população prisional – recordamos que, com 5% da população mundial, os EUA tem 25% da população prisional mundial. Ela perseguiu trabalhadores pobres por posse de drogas leves, ameaçou prender pais pelo abandono escolar dos filhos, manteve pessoas presas para lá da sua pena para serem usadas para trabalho prisional.

Já como Vice Presidente, Kamala foi responsável por uma das mais duras políticas anti-imigrantes com a sua política “Do not come!” (Não venham). Aliás os Democratas chegaram a preparar legislação, em conjunto com os Republicanos, para “proteger a fronteira” que só ainda não passou porque acabou chumbada pelos Republicanos para que o tema da imigração continuasse a ser um tema chave da campanha presidencial.

Recentemente, Kamala esteve ausente do discurso de Netanyahu ao Congresso americano. Israel criticou a sua ausência, jornais como o The Telegraph chegaram mesmo a usar o termo “boicote”. À esquerda, alguns setores viam a postura como uma mudança ao “apoio incondicional” de Biden a Israel. Mas tudo não passou de teatro político, já que, no dia seguinte, Harris reuniu em privado com o primeiro-ministro israelita e ofereceu-lhe todo o apoio. No seu discurso, Harris, mostrou-se mais empática com o sofrimento vivido em Gaza, mas trata-se apenas de retórica, já que também afirma o apoio incondicial a Israel e continuará a enviar bombas e munições para Israel proceder com o genocídio.

Faz falta um partido dos trabalhadores

Desde 2016 que tem ganho força uma ala mais social-democrata dentro do partido Democrata. Nesta ala incluem-se representantes como a Alexandria Ocasio-Cortez (AOC), Ilhan Omar, Bernie Sanders, etc. Mas ao longo do tempo, esta ala tem-se revelado cada vez mais centrista. Sendo verdade que os Democratic Socialists of America (DSA) apelaram a que Biden se retirasse da campanha logo a seguir ao debate desastroso, já a AOC – que também é militante da DSA –, Ilhan Omar e Bernie Sanders mantiveram-se com o presidente americano até ao fim. Criando ilusões sobre o que tem sido a presidência americana e sobre a possibilidade da derrota de Trump.

Mas a direção do partido democrata já mostrou, vezes sem conta, que está disposta a tudo – inclusive boicotar as suas próprias primárias – para impedir que esta ala ganhe uma influência real dentro do partido. O partido Democrata é um partido burguês do maior estado imperialista do mundo, que irá sempre satisfazer os interesses dos seus financiadores e do complexo industrial militar.

Nenhuma solução virá dentro de dentro do partido Democrata. Mesmo o grupo de democratas “progressistas” eleitos na câmara dos representantes – denominados de “The Squad” – ou outras figuras ligadas à esquerda norte-americana, como Bernie Sanders, já mostraram ser incapazes de romper com o partido Democrata e os seus financiadores.

Mesmo depois das grande votação de Bernie Sanders, nas primárias de 2016 e 2020, e com a profunda crise de regime – que coloca em causa os dois partidos dominantes – este setor continua a recusar-se a criar uma alternativa aos patrões, à burguesia e à política imperialista do seu país. Acabando assim por cumprir o triste papel de levar o descontentamento contra o sistema para debaixo do chapéu de chuva dos Democratas.

O que é necessário é a rutura com o partido Democrata e começar a construção de um novo partido dos trabalhadores. Só assim se conseguiria organizar as lutas pelo fim ao genocídio na Palestina; por um serviço público de saúde; pelo fim do racismo sistémico e por tantas outras lutas que têm levado os trabalhadores e setores oprimidos às ruas.

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