Depois de dois anos de pandemia, sente-se o colapso dos serviços públicos e da qualidade de vida, acentuada pela guerra, inflação e crise habitacional. Apesar do SNS estar em degradação generalizada, esta fez-se primeiro sentir e continua mais intensa na saúde feminina, nomeadamente com o fecho total ou parcial de vários serviços obstétricos e de ginecologia pelo país, com menos profissionais especializados e unidades (ainda mais) sobrecarregadas. A mulher em Portugal vive sobre um ataque sistémico e sistemático, incapaz de confiar no SNS para garantir um parto seguro, tendo de afundar as poupanças em recurso aos privados (cujas práticas também têm vindo a ser denunciadas) ou arriscar saltar entre urgências, para ainda vir a ser vítima de práticas invasivas no parto.
Obstetrícia no SNS em queda livre desde a pandemia
Em 2020, com a pandemia, as mulheres viram as suas condições de tratamento nos serviços de obstetrícia drasticamente reduzidas contra as recomendações da OMS, imposição de restrições às preferências das parturientes, um muito maior número de induções, episiotomias e cesarianas (já historicamente com uma taxa muito elevada em Portugal), suspensão do direito ao acompanhamento durante o parto, e, até receção do resultado negativo de ambos à COVID-19, não lhes ser permitido o contacto com os recém-nascidos e consequente amamentação. Estas medidas prolongaram-se mais do que o expectável, com os condicionamentos à presença de acompanhantes tendo sido apenas levantados em outubro deste ano.
A trajetória da qualidade de prestação de serviços de obstetrícia não acompanhou o esperado com o levantar das restrições, em 2022, com cada vez mais relatos de mulheres a percorrer centenas de quilómetros por falta de vagas nas urgências, e em alguns casos resultando na morte do bebé ou da mãe.
Em resposta a esta crise, o governo propôs o fecho de 6 maternidades, e apesar da contestação generalizada, avançou com um plano de fechos rotativos, com a intenção de cobrir o período festivo em dezembro do ano passado. Estes fechos apenas se tornaram mais frequentes no verão (com apenas 27 das 41 maternidades do país em pleno funcionamento) e a proposta é de que piore ainda mais neste inverno, com mais dias condicionados.
Em 2023 os constrangimentos têm-se vindo a agravar também pelo impacto da falta acrescida de médicos devido à recusa em fazer mais do que as 150 horas extraordinárias anuais (limite legal) em protesto. Não só este facto tem sido usado pelo governo para reagir e se justificar relativamente aos constrangimentos e fechos de urgências, como também não enfrentam o problema de fundo, tendo o ministro da saúde sublinhado que o “funcionamento das urgências hospitalares sempre dependeu de horas extraordinárias”, e que “confia nos princípios deontológicos dos profissionais para resolver a questão”.
O caso do Hospital de Santa Maria
O Hospital de Santa Maria (HSM), em Lisboa, fechou no verão a urgência obstétrica para obras de beneficiação da maternidade, que parecem ter começado apenas recentemente. A obra causou muitas tensões no serviço, associada à exoneração do Diretor do Serviço de Obstetrícia e Ginecologia Dr. Diogo Ayres de Campos, que abertamente não aprovava do projeto, e subsequente demissão dos chefes de equipa das urgências de Obstetrícia, em protesto com a degradação das condições do serviço e falta de organização das transferências de utentes para o Hospital São Francisco Xavier (HSFX) ou unidades privadas.
Já no mês passado mais 7 obstetras se demitiram do HSM, pela falta de organização na relocação no HSFX, e a redução das equipas, que deveriam ter 6 especialistas, mas na realidade apenas têm dois ou três. Este alocamento de profissionais resulta do programa “Nascer em Segurança no SNS”, que justificava o encerramento das urgências e maternidades para assegurar a dimensão e qualidade das equipas. Enquanto que a nível nacional se fala de profissionais de saúde a fazer mais de 600 horas extraordinárias em 2022, a ex-diretora do serviço de obstetrícia e ginecologia do HSM fala de profissionais a realizar 900 horas, que equivale a três meses de trabalho.
A estas demonstrações de protesto acrescentam-se as experiências vividas no HSM: o Observatório de Violência Obstétrica (OVO) recebeu relatos relativos ao aumento de dificuldades no acesso a cuidados pré-natais em tempo útil no HSM por parte das próprias grávidas e Médicos de Família. A situação obrigou a que utentes fossem encaminhadas de forma não planeada para outras unidades (públicas ou privadas), o que agrava o risco de situações de saúde agudas, dado o tempo adicional e o transporte necessários para a avaliação. Esta situação não é pontual, nomeadamente se continua a haver falta de médicos e não há um plano para deixar de depender de horas extraordinárias ilegais. Ainda que oficialmente as transferências para unidades privadas só perfaçam 1% dos casos, é importante ter em consideração que já muitas grávidas desistiram do SNS, quer pelas histórias de horror que conhecem, como pelo simples facto que não conseguem ser atendidas ou realizar exames no HSM.
É preciso defender o direito das mulheres à saúde
O desmembramento das equipas de assistência médica, devido à relocação dos serviços do HSM, mas também devido ao funcionamento rotativo e ao reencaminhamento para outras unidades, como se vê pelo país todo (com a AML particularmente afetada, com apenas uma urgência de ginecologia e obstetrícia permanentemente aberta na margem sul) coloca as mulheres em risco, sem continuidade do cuidado que permite prevenir situações de risco. As urgências pediátricas também estão fortemente condicionadas, com 7 urgências fechadas de noite ou com constrangimentos – e é importante notar como não só isto dificulta a coordenação necessária com os serviços de assistência ao parto, como evidenciado pela infeliz morte no ano passado de uma mulher grávida transferida do HSM para o HSFX por falta de vagas no serviço de neonatalogia, mas também porque são as mulheres quem são maioritariamente afetadas por estes constrangimentos uma vez que na maioria dos casos são as cuidadoras primárias dos filhos.
É urgente investir no SNS, e é importante que a luta feminista se una à luta dos trabalhadores da saúde, porque as mulheres são desproporcionalmente afetadas pelo desinvestimento no SNS, tanto no acesso geral à saúde (sendo mais provável serem ignoradas ou desprezadas, tendo menos independência financeira, p.e.) como no acesso à saúde feminina. A violência obstétrica é perpetuada neste país por diretrizes que não valorizam a autonomia da parturiente, por perpetuação de práticas invasivas no parto e em momentos de crise, como durante o COVID e a consequente quebra que estamos a presenciar, um completo desleixo destes serviços que deixa as mulheres nas mãos dos privados ou diretamente sem acesso a cuidados de saúde.
Assim, exigimos:
- A reabertura e o reforço dos blocos de parto, das urgências e dos serviços de ginecologia/obstetrícia;
- A implementação de políticas de saúde de proximidade, na gravidez, no parto e no pós-parto, que priorizem a dignidade e a integridade corporal das mulheres;
- O fim da precariedade dos profissionais de saúde, através do aumento dos salários e valorização das carreiras.