Como já escrevemos noutros textos, o atual governo do PSD vive uma situação sui-generis. Nasce como resultado de umas eleições muito renhidas, numa maioria relativa extremamente curta e sem a garantia que fosse beneficiar de novas eleições. Assim, o governo é obrigado a viver em campanha permanente, focado nas classes médias, onde disputa eleitorado com o PS e Chega. Para além disso, vive também aterrorizado com as mobilizações que assombram o último ano do Governo PS.
Pela combinação desses fatores, tenta afastar-se da imagem deixada pelo último governo do PSD – ligada à austeridade, ao corte dos apoios sociais e dos salários –, mas nem por isso deixa de servir os interesses dos patrões. Este Orçamento do Estado é reflexo disso mesmo: com políticas desenhadas para servir os interesses dos grandes empresários ao mesmo tempo que tenta dar uma cobertura “social” aos “sociais-democratas”.
Nesse sentido, este orçamento é semelhante àqueles que o próprio Partido Socialista tem apresentado – repleto de truques de ilusionismo –, revelando assim, que a intrincada dança entre oposição do PS e o governo, nada mais é que teatro político. Continua, assim, a trajetória dos últimos anos, de desinvestimento nos serviços públicos numa agora mais clara perspectiva de privatização.
As falsas medidas sociais do governo
No caso dos transportes públicos, o governo apresentou duas novidades: o Passe Social Gratuito sub-23, que anteriormente era apenas para estudantes, e o Passe Ferroviário Verde de 20€. São medidas que se aproximam da gratuidade dos serviços públicos, mas levantam a questão: quem é que vai pagar por esses passes? As empresas de transportes coletivos, por exemplo, apressaram-se logo a exigir ao governo que pague as dívidas que já tem, sob o risco de não reconhecerem o novo tarifário dos passes.
Já o Passe Ferroviário Verde levanta questões sobre como isso afetaria a estabilidade financeira da CP – abrindo portas para uma futura privatização. Na realidade, a CP tem sido vítima de um processo de privatização ao longo dos anos, desde a gestão da empresa feita por uma entidade privada, até à venda da CP Cargas (agora Medway). Os lucros da Medway, por exemplo, poderiam servir para um melhor serviço da CP com tarifários mais baixos e cobrir o passe social verde, mas isso iria contra os interesses dos privados e da União Europeia. Além disso, ao não reforçar a oferta dos intercidades e comboios regionais, dificilmente este passe terá algum efeito real na maioria da população.
Seguindo os passos do anterior governo do PS, o PSD também não tem medidas estruturais para combater a crise da habitação. Não propôs nada para a reabilitação das casas devolutas, não prevê a construção de mais habitação pública ou limites nas rendas. Assim, manteve os apoios do Partido Socialista, que pagava aos inquilinos uma parte das rendas, permitindo que os senhorios continuassem a especular.
Redução de impostos para quem?
Depois de 10 anos em oposição às políticas do Partido Socialista, em especial à fiscalidade do PS, seria de esperar que o PSD apostaria numa reversão destas políticas. Pelo contrário, o PSD aplica as políticas do PS, de aumento dos impostos para os mais pobres e isenções fiscais para os mais ricos, agora mais descaradamente.
Este orçamento, ao mesmo tempo que diz reduzir os impostos, prevê o aumento da receita proveniente de impostos. Como é isto possível? Essencialmente de duas formas. Primeiro, o orçamento recupera impostos do PS, como os impostos sobre os combustíveis – que estava descongelado desde o início de 2022. Por outro, tem esperança que o aumento do consumo privado aumente – ou seja, que os portugueses consomam mais, incluindo combustível, tabaco e álcool).
Sobre o IRS, as propostas do governo incluem uma expansão do IRS jovem, que passa de 5 para 10 anos, e uma alteração nas tabelas de IRS. Como é de esperar, as alterações nas tabelas de IRS beneficiam sobretudo os escalões mais altos, com taxas mais favoráveis.
Já para as empresas, o governo promete reduzir o IRC para 20%, entre outros benefícios fiscais, como a redução da taxa da Tributação Autónoma na compra de novos carros, aumentando o primeiro escalão de 20 mil para 30 mil euros.
Ou seja, exatamente a receita do PS: aumentar os impostos para a população em geral e reduzir para os mais ricos.
Serviços públicos no caminho da privatização
Este orçamento leva encapuzada a privatização a longo prazo dos serviços públicos. O exemplo mais grave disso é mesmo o Serviço Nacional de Saúde, mas também a Educação e a RTP parecem ir pelo mesmo caminho. A título de exemplo, é interessante notar como houve um aumento de 11% no orçamento para a defesa, mas apenas de 6,8% para a educação, revelando as prioridades deste governo.
No caso da RTP, a proposta do fim da publicidade no canal público é motivada, principalmente, por um interesse em desregular o mercado da publicidade, permitindo aos privados cobrar mais ao minuto. Segundo o governo, estão a seguir o exemplo dos canais públicos da Inglaterra (BBC) e do Estado Espanhol (TVE). Mas, no caso da BCC, o financiamento é garantido por uma taxa superior à contribuição para o audiovisual aplicada em Portugal. Já no caso espanhol, o investimento é alocado diretamente pelo Orçamento do Estado. Ora, este orçamento, não prevê nem alterações na contribuição para o audiovisual nem uma maior despesa na RTP, o que significa que se trata de um corte direto nos rendimentos da empresa.
Já para a saúde, este orçamento prevê um aumento de 9%. Mas, mais importante é saber para onde vai esse aumento do investimento. Dos quase 16 mil milhões de despesa corrente, 7 mil milhões vão para despesa com pessoal, já para “aquisição de bens e serviços” vão mais de 8 mil milhões, são cerca de 53% da despesa total na saúde. Na categoria de “aquisição de bens e serviços” entram despesas como compra de medicamentos, análises e outros serviços comparticipados pelo Estado, que podiam ser oferecidos diretamente pelo Estado, mas, ao invés disso, são entregues para engrossar os lucros dos privados.
O orçamento também prevê a construção de novos centros de saúde, mas tratam-se de Unidades de Saúde Familiar tipo C (USF-C). As USF-C foram introduzidas pelo Governo de José Sócrates, mas nunca colocadas em prática. Tratam-se de Centros de Saúde geridos por privados, que têm total autonomia nas decisões da gestão, inclusive na remuneração dos trabalhadores da saúde. Para além disso, prevê também a construção de um novo Hospital em Barcelos ou no Algarve, mas, como já estamos à espera, tratam-se de Parcerias Público-Privadas.
A ilusão da redução da dívida
Desde a crise da dívida soberana que a redução da dívida é uma alegada preocupação dos governos, principalmente como uma desculpa para desinvestir nos serviços públicos.
Este orçamento não é excepção. O Governo anunciou uma estimativa da redução da dívida de 95,9% para 93.3% em percentagem do PIB. Mas trata-se de mais um truque de ilusionismo, e é o próprio orçamento que o diz: “O crescimento do PIB nominal e o excedente primário contribuirão para a redução do rácio da dívida”. Ou seja, como a estimativa é que o PIB aumente, a dívida (em percentagem do PIB reduz). Na realidade a dívida tem-se situado, desde 2020 nos 270 ou 280 mil milhões de euros, e não se antecipa nenhuma redução substancial. Muito menos os governos do PS e PSD estão interessados na suspensão do pagamento da dívida e uma auditoria independente para determinar quanto dessa dívida é dívida odiosa.
Quem luta alcança conquistas
O anterior governo do PS terminou a legislatura a enfrentar a classe trabalhadora num grande processo de mobilização. Contam-se protestos dos profissionais da educação, trabalhadores da saúde, trabalhadores judiciais, polícias, etc. Consciente de que o novo Governo nascia demasiado fragilizado para enfrentar diretamente esta mobilização, o governo de Montenegro decidiu investir pela via da negociação.
Já por isso, este orçamento mostra as negociações que foram alcançadas para todos os grupos profissionais que têm vindo a lutar nos últimos meses. Mostrando assim que a luta serve para arrancar vitórias. O tempo de serviço devolvido aos professores, por exemplo, não é nenhum presente do atual executivo, mas sim o fruto da luta intensa destes trabalhadores no último período.
Mas muitas das reivindicações que levaram milhares de profissionais às ruas ficaram por cumprir neste orçamento. As escolas continuam com falta de assistentes operacionais, psicólogos e com infraestruturas em decadência. Sobre os assistentes operacionais, que também estiveram em luta, nada foi dado. Continuam a ter de trabalhar mais de 100 anos para poder chegar ao topo da carreira, por exemplo.
Pela calada, o governo tenta, através deste orçamento, ter uma via facilitada para uma alteração dos direitos laborais da função pública. Ainda não é público o que exatamente o governo quer alterar, mas deverá tocar nas justificações por doença, no direito às férias e sobre o pré-aviso de greve. Tendo em conta o que este governo já demonstrou em pouco tempo, essas alterações certamente não serão a favor dos trabalhadores.
O teatro dos partidos frente ao orçamento
Foi muito revelador poder testemunhar o comportamento dos diversos partidos políticos frente ao orçamento e ao débil governo do PSD. À direita, a IL, dada a sua insignificância na aritmética parlamentar, acabou por desaparecer das negociações, limitando-se a fazer críticas vagas sobre o orçamento; já o Chega repetiu o triste papel de Paulo Portas há uns anos atrás, oscilando entre revogável e irrevogável se aprovaria ou votava contra o orçamento.
Por fim, quem acabou por dar a mão a Montenegro foi mesmo o PS. O que não é surpreendente dado que este orçamento não é muito diferente daqueles que o PS apresenta, mas contrasta com a retórica de Pedro Nuno Santos, que dizia que nunca viabilizariam um orçamento de direita.
À esquerda, entre o BE, LIVRE e PCP, e até mesmo das forças sindicais como a CGTP, houve uma clara falta de combatividade para enfrentar este orçamento. Mantendo-se as lutas separadas e desarmando a classe trabalhadora