O MFA era um movimento dinamizado essencialmente pela oficialidade média, proveniente sobretudo da pequena burguesia e da classe média urbana. Era também expressão política, dentro dos quarteis, do que se sentia há já algum na sociedade: o medo à guerra e o ódio ao regime.
O vermelho vivo dos cravos, da primeira primavera livre em Portugal, em 1974, impôs-se sobre a antiga paisagem cinzenta da ditadura fascista. O obsoleto e atrasado, porém enorme, império português era capitaneado por um velho regime ditatorial, no poder há quase meio século, em que algumas famílias burguesas controlavam os principais sectores da economia, amealhando uma parte significativa da riqueza produzida. Esta riqueza acumulada pela ínfima minoria da sociedade contrastava com a miséria de uma grande parte da população, que estava cada vez mais cansada do regime autoritário e das miseráveis condições de vida a que estava sujeita.
As fissuras do velho império português começaram a abrir-se, bem longe de Lisboa, no norte de Angola, em 1961. A primeira revolta negra anti-colonial, a 15 de Março 1961, contra os colonos portugueses e as suas fazendas e postos administrativos, levou a que, durante meses (até Setembro), a ditadura perdesse o controlo de uma zona. Assim, foi realizada uma investida de retaliação, violentíssima, pelo exército Português, iniciando-se a guerra colonial.
O fim do odiado império português foi possível graças à corajosa e determinada juventude negra que, não temendo a desproporcionalidade das forças em combate, entregou as suas vidas à conquista da liberdade e independência dos seus territórios. A guerra trouxe mais dificuldades para Portugal, a fome e a pobreza avançam e os mortos e mutilados não paravam de chegar ao continente. A guerra arrastava-se.
Na Guiné, as batalhas travadas eram particularmente duras e as tropas portuguesas estavam na iminência de perder o controlo total da colónia. A situação difícil abriu uma crise na burguesia do país, com uma parte a não considerar possível continuar a Guerra e outra a considerar imprescindível negociar o fim da guerra e tentar uma transição, para garantir os seus interesses económicos na região e conceder algum tipo de liberdade ou autonomia para as colónias. Este sector teve como principal pivô político o general Spínola, que através do livro “Portugal e o Futuro” lançou essa ideia do fim da guerra como a hipótese mais viável para manter os interesses do país intactos.
A divisão nas elites dominantes e o descontentamento generalizado – mesmo que com níveis de consciência muito diferentes – dos dominados geraram, no interior do exército, um movimento (o MFA, Movimento das Forças Armadas), que estava farto de uma guerra sem fim à vista e de um regime obtuso e autoritário, que obrigava a juventude a arriscar a sua vida em terras tão distantes e que nada lhes diziam.
Assim, o MFA, na madrugada do dia 25 de Abril, operacionalizou um golpe militar que retirou Marcelo Caetano do poder, entregando-o de seguida, através da Junta de Salvação Nacional, ao General Spínola, homem de confiança das elites portuguesas. Porém, houve um factor com que o MFA não contava, ou pelo menos subestimava: a vontade das massas em ajustar contas com o velho regime depois de tanta exploração e pressão.
O povo saiu à rua para festejar e para “ajudar” o MFA a derrotar o que restava do velho regime. Apesar de o MFA ter pedido, pela rádio, para as pessoas aguardarem em casa por indicações, a verdade é que isso não aconteceu e a população saiu à rua eufórica, festejando a queda do regime. Logo nos dias a seguir ao golpe, começam os saneamentos (expulsar de empresas e organismos públicos os homens de confiança do fascismo), iniciam-se as manifestações por direitos e salários e são realizadas as primeiras greves e ocupações de casas devolutas.
O MFA era um movimento dinamizado essencialmente pela oficialidade média, proveniente sobretudo da pequena burguesia e da classe média urbana. Era também expressão política, dentro dos quarteis, do que se sentia há já algum na sociedade: o medo à guerra e o ódio ao regime. Se o MFA iniciou, mesmo que não fosse a sua intenção, um processo revolucionário no país, ao ter realizado um golpe militar bem sucedido contra a ditadura, rapidamente se assustou com a radicalidade que as lutas da classe trabalhadora iam adquirindo. A origem social do MFA explica as limitações das suas escolhas políticas, porém isto não significa que o MFA fosse um corpo homogéneo politicamente, já que existiam diferenças, cujos contornos se tornariam mais nítidos, à medida que a situação revolucionária avançava.
Efetivamente, o MFA foi oscilando, ao longo do PREC, fazendo o papel de mediador, entre a radicalidade do movimento de massas (cuja vanguarda era operária, sobretudo nas zonas industriais de Lisboa e Setúbal, juntamente com os camponeses do Alentejo) e o conservadorismo da burguesia apavorada com os métodos radicalizados da classe trabalhadora organizada. Por vezes acabou por ceder ao movimento de massas, porém, sempre com um acordo estratégico com o imperialismo e o estalinismo: derrotar o poder popular que brotava da luta de classes para encerrar a situação de duplo poder. O MFA compreendeu, mesmo que tardiamente, que afinal o seu projecto não era compatível com o projecto de Spínola.
O peculiarmente sinistro General Spínola pretendia a realização de eleições presidenciais, para “legitimar” a condução do país às suas mãos e dessa forma impor um regime autoritário para impedir que o poder caísse nas ruas. O MFA não concordava e, em alternativa, apelou a que se realizasse uma assembleia constituinte, no lugar das presidenciais, defendidas pela burguesia, que via nelas uma saída possível para acalmar e depois derrotar o movimento de massas que agitava o país e tornava-o impossível de governar.
O MFA contava com um enorme prestígio junto da população mais pobre e trabalhadora, por ter derrubado Caetano. Fruto desse prestígio, foi ganhando posições importantes com o pacto MFA/Partidos e a formação do Conselho da Revolução, que dava autoridade ao MFA, junto com os partidos, para comandar o país. Desde o 1º de Maio de 74, o PCP passou a agitar a palavra de ordem unidade Povo-MFA, para garantir a vitória da “revolução democrática”. Utilizando o prestígio do MFA, junto das massas, e a influência que o Partido tinha no seio do MFA, para conseguir levar a cabo o seu programa.
Se a explosão da revolução no país ocorreu por o rastilho ter sido aceso pela revolta nas colónias contra o imperialismo português, o desenrolar do processo revolucionário foi também fortemente condicionado pela ingerência das principais potências mundiais: URSS e EUA. Se relativamente à Europa havia, desde a conferência de Yalta, um acordo quanto à divisão em áreas de influências, África ainda estava em “aberto”. Para a URSS, em crise, a perspectiva de meter a mão à riqueza angolana era muito apetecível, por isso era fundamental garantir que Angola independente fosse dirigida pelo MPLA (partido-guerrilha com fortes ligações a Moscovo). Já os EUA financiavam a UNITA, com os mesmos propósitos: explorar Angola.
Um sector do MFA tinha ligações fortes com o PCP e outro sector com o PS. Assim, os governos provisórios que geriram o país eram dirigidos pela tríade MFA-PCP-PS, até às primeiras eleições livres. Eram governos de conciliação de classes, porque tinham os representantes dos trabalhadores e dos burgueses, também chamados de governos de frente-popular. Estes governos provisórios iam “acompanhando” o desenrolar do processo revolucionário no país. À medida que a relação de forças na sociedade ia girando de forma vertiginosa à esquerda, os governos provisórios iam também se reciclando.
Se nos primeiros governos provisórios o peso da burguesia era o que prevalecia, à medida que a situação revolucionária se intensificava e a burguesia falhava na concretização dos golpes reacionários (28 de Setembro e 11 de Março), a representação política dos trabalhadores ia ganhando peso, em detrimento da representação burguesa. A 11 de Abril de 1975 assina-se o pacto MFA-Partidos (não foi assinado pela extrema-esquerda), que reforçava a posição do MFA junto do aparelho de estado, e garantia não só a sua inclusão na nova constituição, mas também que a constituinte fosse de acordo com o programa do MFA. Ou seja, o PCP, com o aproximar das eleições e percebendo que o PS eleitoralmente iria vencê-las, tentou garantir que a força do MFA na gestão do país se mantivesse, independentemente do resultado das eleições.
No V Governo provisório, último presidido por Vasco Gonçalves, já não existia no governo nenhum sujeito político que representasse diretamente a burguesia. Apenas ficou a sombra da burguesia no V Governo Provisório, projectada em alguns sectores do MFA. Só o PCP e o MDP/CDE o apoiam. Como muitas vezes ao longo dos meses da revolução, o MFA demonstra inequivocamente as limitações pequeno-burguesas da sua direcção, que mesmo com a fuga da burguesia do Governo e os empresários a saírem das fábricas com medo, não traçou um caminho alternativo, não assumindo a condução do Governo de forma independente da burguesia, ou seja, não formando um governo dos trabalhadores.
Dois meses após a eleição do VI Governo provisório, o 25 de Novembro de 1975, golpe militar protagonizado pelo grupo dos 9, um grupo de oficiais das Forças Armadas ligado ao PS, e apoiado por toda a direita, dita o fim da revolução e dos seus possíveis desfechos. Foi como o acordar repentino de um sonho escaldante igualitarista, com um banho de água fria. O sucesso do golpe, com a ausência de resposta pelos sectores de esquerda do MFA, ( “para evitar uma guerra civil”) garantiu o regresso da disciplina e da ordem nos quarteis, ou seja, que as forças armadas voltassem a funcionar normalmente, respeitando as rígidas hierarquias militares, extirpando a democracia que se vivia nos quarteis. Esta data é ainda hoje descrita pelos burgueses como uma “vitória da democracia” contra as tentativas de impor uma ditadura comunista no País.
Com a reconstrução das forças armadas, a burguesia tinha conseguido dar o primeiro passo num trajecto cuja a meta era clara: derrotar o poder popular que crescia e alastrava, de uma classe trabalhadora que se agigantava perante os seus inimigos de classe, aterrorizando a burguesia e as classes médias abastadas.