Há umas semanas foi discutido na Assembleia da República o “Estado da Nação”. Para o Governo, esta não é mais que uma oportunidade para perpetuar a sua narrativa de que está realmente preocupado em resolver os problemas das pessoas. Já para a oposição é ocasião para celebrar a sua própria hipocrisia.
O Estado da Negação
O Governo agarra-se aos números da economia para dar uma imagem cor-de-rosa da vida das pessoas. Mas ignorar os problemas reais que a população enfrenta, em benefício de uma fantasia paralela montada à volta da manipulação de números, tem sido uma tática de retórica recorrente desde que Costa assumiu o lugar de Primeiro Ministro em 2015.
Hoje, o Governo diz que o desemprego desce, mas falha em explicar que o crescimento do emprego se dá à custa de uma crescente precarização do trabalho. Anuncia entusiasticamente que a inflação está a descer, mas ignora que os preços dos bens essenciais, ainda bem acima do que se praticava em janeiro do ano passado, continuam excessivamente altos para os salários que se praticam em Portugal. Para o SNS, o Governo felicita-se com a “profunda alteração orgânica” (leia-se privatização) que a saúde pública está a atravessar, sem falar do caos nas urgências, nem dos motivos que têm levado os trabalhadores da saúde a continuadas greves ao longo dos últimos meses.
À oposição de direita, que vê a sua política ser tão habilmente aplicada pelo governo PS, resta-lhe pouco mais que reclamar por impostos mais baixos. Fica claro que o PSD, mesmo com a mudança de liderança, não consegue apresentar-se como alternativa ao PS.
De fora da discussão esteve a comissão parlamentar de inquérito (CPI) à TAP, que dominou o mediatismo dos últimos meses e revelou uma gestão ruinosa da TAP desde a sua privatização até agora. No fim, a montanha pariu um rato.
CPI à TAP: a montanha pariu um rato
Depois de meses de polémicas, diretos nos telejornais, artigos de opinião, eis que termina a comissão parlamentar de inquérito à TAP. O relatório conclui, como seria de esperar de um documento redigido e aprovado pelo próprio PS, que não houve interferência das tutelas na gestão da TAP, merecendo o voto contra de todos os demais partidos da Assembleia da República.
A CPI nem investigou a fundo o processo de privatização da TAP: a forma como David Neeleman comprou a TAP usando os próprios dinheiros da TAP ou como a gestão privada prejudicou a empresa portuguesa, em benefício de outras empresas de Neeleman. A CPI não aprofundou essas questões porque não interessavam nem à direita – que esteve à cabeça de todo esse processo – nem ao PS – que se prepara para privatizar novamente a TAP. O que a CPI conseguiu fazer foi garantir a regeneração de Pedro Nuno Santos perante a opinião pública. Pedro Nuno retirou-se atempadamente, deixando Galamba como o principal responsável perante o público durante a CPI.
Agora Pedro Nuno regressa sorridente ao parlamento e parece manter-se como principal figura a vir substituir António Costa na liderança do partido. Quem agradece é PCP e BE, que contam com a aura de “esquerda” de Pedro Nuno Santos para justificarem nova aproximação ao Governo, como já foi deixado explícito pelo próprio líder do PCP, Paulo Raimundo.3 A um futuro governo do PS com Pedro Nuno como primeiro-ministro, também lhe convinha o acordo com as esquerdas, conseguindo, dessa forma, manter sob controlo a contestação social num período que se antevê muito atribulado.
Negociatas no público e no privado
Também esta semana confirmamos novamente que a corrupção não acontece só na gestão do Estado. Veio a público como Armando Pereira, antigo presidente da Portugal Telecom, e o seu amigo Hernâni Vaz Antunes montaram uma rede de offshores em paraísos fiscais. A ideia era superfaturar estas empresas e assim arrecadar os lucros desses falsos negócios. Armando Pereira chegou mesmo a fazer contratos milionários para Vaz Antunes, garantindo dividendos para si próprio.
Para além destes esquemas de sobrefacturação de offshores, descobriu-se também que Hernâni Vaz Antunes comprou vários prédios pertencentes à Altice a preços inferiores aos valores do mercado, que vendeu logo de seguida com enormes margens de lucro. Num dos casos, comprou um imóvel por €4 milhões, vendendo-o, um mês depois, por €7 milhões.
Tal como a TAP, a privatização da PT foi um processo ruinoso que significou a destruição da antiga empresa de telecomunicações portuguesa – através de despedimentos, venda de infraestruturas e de património. Tal como se fez com a TAP, o processo de privatização significou entregar de mão beijada património do Estado a gestores que, desprezando o interesse público, o utilizam apenas para ganhar lucros fáceis.
Mais habitação promete mais especulação
Também na última semana foi aprovado o programa “Mais Habitação” que, como já denunciamos antes, não responde à crise da habitação que os jovens e a classe trabalhadora têm enfrentando. Em primeiro lugar, porque parte de um pressuposto errado: o de que a origem da crise habitacional é a falta de casas. Assim, o pacote serve apenas para desregular ainda mais o mercado da construção. Nesta medida, a “solução” que Costa apresenta não é muito diferente daquela que a direita apresentaria.
Do seu lado, a direita arranca os cabelos dizendo que o programa “Mais Habitação” é um “ataque à propriedade privada”. É um favor que fazem ao PS, dando uma imagem de esquerda a um programa de direita. Na realidade não existe nenhuma expropriação no programa, mas sim subsídios para que os senhorios reabilitem casas.
Como se não fossem suficientes a desregulamentação do mercado e os subsídios para os senhorios, o programa visa ainda ir mais longe que a famosa Lei Cristas, facilitando os despejos numa altura em que, já com a atual lei, os despejos não param de crescer.
JMJ: o Estado não tão laico
As JMJ têm estado envoltas em polémica ainda antes de começarem. Sendo verdade que a maioria da população portuguesa se considera católica, não deixa de ser também verdade que a maioria quer garantir a separação entre o Estado e a Igreja. Essa separação tem sido posta em causa com a quantidade de dinheiro esbanjado nas JMJ, enquanto a população continua a necessitar de investimento nos serviços públicos e transportes.
Com a população de Lisboa há anos a exigir mais e melhores transportes, agora parece que o Estado e a CML encontraram dinheiro para investir, durante essa semana, em transportes públicos, em palcos, em reforço de trabalhadores, em requalificação de espaços. Onde estava todo este dinheiro quando as pessoas ficavam sem conseguir respirar dentro dos transportes de Lisboa?
E não é só a questão de financiamento que tem gerado contestação. Recentemente tem-se tornado cada vez mais público que milhares de crianças têm sido violadas em Portugal por membros da Igreja católica. Sobre isto a extrema-direita – eternamente preocupada com a pedofilia – nada diz; a Igreja portuguesa tenta varrer o assunto para debaixo do tapete; a Câmara de Oeiras censura quem ousa levantar o tema. Já o Papa procura mascarar a situação dedicando-lhe uma hora de conversa com algumas das vítimas, e os media aproveitam a ocasião para limpar a cara à Igreja.
As JMJ têm-se tornado isto: mais uma oportunidade para o Governo apresentar Portugal como um país à venda, ideal para turistas, nómadas digitais, vistos gold e grandes eventos, enquanto continua a ignorar as necessidades de quem cá vive, estuda e trabalha.
As lutas não podem tirar férias
Temos assistido no último semestre a um aumento da mobilização por carreiras e salários em vários sectores. Os trabalhadores, pressionados pelo aumento do custo de vida e com os serviços públicos em colapso, começam a reagir, dando continuidade ao novo ciclo de lutas iniciado pelos profissionais da educação, com as greves por tempo indeterminado e gigantescas mobilizações do STOP, a que se seguiram lutas em sectores como a saúde, a justiça e os transportes, em particular nos comboios e aeroportos, entre outros setores de atividade.
O país entra agora em período de férias sem que os problemas que levaram a estas mobilizações estejam resolvidos ou as suas reivindicações satisfeitas. O Governo Costa, depois de ter sido encostado às cordas pelas lutas dos profissionais da educação, procura respirar e distrair o país com as JMJ. É por isso fundamental manter as lutas enquanto o país entra de férias e preparar novas ações, unificando as greves em defesa dos serviços públicos e do reconhecimento dos seus profissionais. Exemplo disto mesmo são os trabalhadores não docentes de Lisboa, em greve contra a sua convocação para dar apoio às JMJ, assim como as greves no sector da saúde, de médicos e enfermeiros, por carreiras e condições dignas num SNS em ruptura, em particular no Hospital Santa Maria, em Lisboa, e no Algarve.
No sector privado também há a destacar as greves dos trabalhadores da Parques de Sintra, contra a desregulação de horários, dos motoristas da Transdev, por causa da falta de condições de trabalho durante as JMJ, ou dos trabalhadores da Portway, por verem o Acordo de Empresa violado pela administração. Todas estas lutas são importantes por manterem a pressão sobre os patrões e o Governo, resistindo à pressão para não haver greves durante as jornadas. Agora é preciso não adormecer durante o verão, começando a preparar uma nova onda de lutas para setembro.